O MENINO E A GARÇA

Por Leonardo Lima*

A imponência do estilo e da imaginação fincada em solo de indubitável fertilidade criativa que consagraram Hayao Miyazaki se fazem presentes, novamente, em O Menino e a Garça, lançado após o fim de mais uma desistência de aposentadoria por parte do diretor japonês, um dos mais longevos cineastas ainda ativos. Além de retomar os traços do 2D fluido e pictórico tão característico da filmografia de Miyazaki (A Viagem de Chihiro, Princesa Mononoke e Meu Amigo Totoro), O Menino e a Garça tem como substrato da narrativa um conto fabular o qual se encontra alicerçado nos escombros de uma grande tragédia familiar envolvendo o seu jovem protagonista, Mahito.

Um dos pontos altos é a recontextualização social e histórica feita tendo em vista o material original que dá suporte à adaptação, um romance homônimo lançado em 1937 por Genzaburō Yoshino. A versão cinematográfica de O Menino e a Garça transpõe os acontecimentos para os duros anos da II Guerra Mundial, período no qual o Japão juntou forças com Alemanha e Itália na famigerada aliança do Eixo. O impacto de tal escolha criativa é sentido desde os primeiros instantes, quando vemos Mahito perder a mãe num incêndio – por sinal, este é apresentado de maneira estilizada, com um perturbador uso de elementos expressionistas que instantaneamente nos remetem ao quadro O Grito, de Edward Munch.

Daí em diante, todavia, a viagem proposta por Hayao Miyazaki segue rumos próximos daqueles já vistos anteriormente em suas obras, seja ao abraçar o realismo mágico mediado por encontros entre humanos e criaturas fantásticas, seja ao encampar uma história de superação de traumas do passado por meio da vivência de uma aventura com final feliz. Ainda que se tente imprimir à trama uma aproximação com o nosso mundo real, graças à utilização de personagens que mimetizam comportamentos humanos (a exemplo de uma sociedade constituída por gatos seguidores de uma liderança explicitamente totalitária), O Menino e a Garça em nenhum momento possui força interna para afastar o espectador do sentimento de déjà vu.

Em si, é uma belíssima animação, mas quando comparada a outras obras do diretor, parece não trazer consigo algo que a torne inesquecível. Em suma, é Miyazaki em alto nível, mas longe de expressar a grandeza ímpar de seu realizador.

*Recifense, 38 anos, sociólogo, aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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