O passado não é bem como você consome: o alerta sobre o saudosismo em Noite Passada em Soho.

Por Sthefaniy Henriques*

‘‘A ideia de haver os ‘bons velhos tempos’ de qualquer forma é uma falácia’’ (Edgar Wight para a The Independent UK)

 Até que ponto o saudosismo pode distorcer nossa concepção sobre o passado?

No recente filme do diretor Edgar Wight, Noite Passada em Soho (2021), acompanhamos Eloise (Thomasin McKenzie), uma jovem britânica aspirante ao mundo da moda que, misteriosamente, viaja no tempo até o ano de 1964, período que compõe a década no qual a garota é obcecada. Ao viajar para iluminada Soho todas as noites ao dormir, Eloise segue os passos da bela e intrigante Sandie (Anya Taylor-Joy), esta jovem que se apresenta como futura cantora e bon-vivant, envolvida nas animadas festas da região de Soho e, aparentemente, apaixonada pelo charmoso agente Jack (Matt Smith), um remansense da subcultura teddy boys.

Essa breve descrição sobre a premissa inicial deixa a entender que o filme é um romance com elementos de ficção científica, visto que Eloise tem a oportunidade de retornar a Soho em 1960 e presenciar as festas noturnas, se envolver em uma paixão rebelde à moda antiga. No entanto, em meio a uma ambientação belíssima que transmite a grandiosidade, calor e magia daquela época, Noite Passada em Soho é como um sonho psicodélico.

Crítico, o alicerce para a história envolve o saudosismo de Eloise e a realidade sessentista de Sandie.

Cinema e atuação do presente sobre o passado

 O que nos faz olhar para o passado com bons olhos visto que não o presenciamos? Como podemos amar uma época que não vivemos? O caso de Noite Passsada em Soho, que logo será aprofundado, não é único. Atualmente, as redes sociais como TikTok e Pinterest são grandes influências para essa aclamação ao passado, da mesma forma que canais de televisão foram fatores influentes para a geração Z se apegar a décadas anteriores.

Ao evidenciar o cinema a partir de uma perspectiva historiográfica, é necessário ressaltar três pontos que nos ajudam a entender a romantização do passado. 1) o cinema é um agente histórico, 2) os filmes são interpretações de uma época, 3) essas interpretações produzem ou dão continuidade a memória coletiva.

Ao falar de cinema, o doutor em história José D’Assunção (2011) aponta que um filme é um agente histórico. Segundo ele ‘‘Um filme, enfim, pode se apresentar como um projeto para agir sobre a sociedade, para formar opinião, para iludir ou denunciar. Portanto, um projeto para interferir na História, por trás do qual podem se esconder ou se explicitar desde os interesses políticos de diversas procedências até os interesses mercadológicos encaminhados pela Industria Cultural’’

Se o cinema produz um significado social e atende aos interesses de certos grupos, chegamos ao segundo ponto. Segundo o mestre em história social Rodrigo Ferreira (2008), os filmes são interpretados pela grande massa como um retrato fiel da época representada, entretanto, não são. Uma produção fílmica não possuí valor de verdade, é apenas uma interpretação.

Mas quem interpreta esses períodos históricos? É daí que chegamos ao conceito de memória utilizada Halbwachs (2003). Segundo o filosofo, o ser humano participa de duas memórias: a individual e a coletiva, esta última que evoca e mantém lembranças que não são pessoais. Um judeu, por exemplo, menciona perseguições seculares mesmo não vivido.

Mas como tudo isso modifica nossas percepções sobre o passado a partir de um mero filme? É simples: um indivíduo que participa de uma cultura, que se envolve na memória coletiva faz um filme, este filme é uma versão de como aquele individuo entende tal época baseado no ambiente em que compartilha experiências e, por fim, essa versão chega às telas e pretender engajar o público com o que é visto, ao ponto de convencê-los.  

Com tudo explicado, vamos retornar a Noite Passada em Soho.

Eloise e seu saudosismo

 A sequência inicial de Noite Passada em Soho já se utiliza do saudosismo para a apresentação da protagonista Eloise. Enquanto clássica A World Without Love, canção de 1964 interpretada pelo duo Peter and Gordon ecoa pela casa que supomos ser de Ellie (apelido para Eloise), avistamos a jovem dançando pelos corredores, trajada com um vestido feito com jornais. A primeira porta que Eloise adentra é a que contém a palavra ‘‘Carnaby’’ em sua madeira. Tal enfeite não pode passar despercebido, Carnaby faz referência a Carnaby Street, uma rua no coração de Soho que, durante os anos de 1960, se tornou extremamente popular. O lugar também ficou associado ao seu impacto cultural. Durante os anos 60, Carnaby foi um berço cultural, foi difusor da moda, música, artes e costumes ditos modernos. E Eloise, a protagonista de Soho, sabe perfeitamente disso.

Ao entrarmos no cômodo que logo reconhecemos como o quarto de Eloise, as influências e referencias aos anos 60 não terminam. Em meio aos materiais voltados ao design de moda como lápis e manequins, encontramos nas paredes de Eloise diversos looks dos anos 60 que estão ali como inspirações para as criações da garota. Enquanto a mesma reproduz trejeitos e diálogos muito similares à filmes estrelados por Audrey Hepburn, a câmera de Edgar Wight continua a explorar aquela locação, exibindo os cartazes de filmes como Bonequinha de Luxo (1961) e Charity, meu amor (1969), além de indicar que a música que inicia o filme vem de um moderno toca-discos da garota.

A essa altura, podemos chegar a uma conclusão sobre uma reflexão feita agora pouco: Como uma jovem do interior da Inglaterra que nunca viveu os anos de 1960 pode amar tanto tal período? Bom, a resposta já está bem a nossa frente. Uma vez que Eloise não tem memórias individuais sobre tal década, a explicação está no consumo que a jovem faz sobre os conteúdos da época que muito provavelmente chegaram a Eloise através do sentimento nostálgico produzidos na atualidade.    

São esses recortes interpretativos da história apresentados sobretudo no audiovisual que geram a nossa percepção do passado como um melhor lugar para se viver ou que mereça ser agraciado por apresentar elementos distorcidos que soam convidativos em nossa atualidade. No caso de Eloise, a garota não está pensando nos anos de 1960 em sua totalidade, pelo contrário, ela nota tal momento como o período de ascensão do Swinging London, ou seja, um recorte muito específico.

Sandie e sua realidade sessentista

 No pequeno recorte de Eloise, retomamos a Swinging London em Soho. Com luzes em vermelho e azul em alto contraste que remetem ao belo e psicodélico pesadelo interminável de Suspiria (1977) do grande diretor italiano Dário Argento, encontramos Sandie, uma personagem que entra em um café chique e de relevância, com o grande sonho de ser cantora

A primeira cena de Anya Taylor-Joy como Sandie está ligada a experiência da atriz Diana Rigg no fim da década de 1950. Rigg que interpreta a Sr.Collins, foi uma estrela de cinema famosa durante os anos de 1960 e, ao visitar locações com Wight, confessou ao diretor várias de suas experiências. Diana, ao entrar no Café de Paris com Wight, relembra que pisou no café pela primeira vez aos 18 anos e, enquanto descia as escadas do lugar, os homens presentes no local a avaliaram de cima a baixo. O diretor não pensou duas vezes e ali estava a primeira cena de Sandie em Noite Passada em Soho, atrelada diretamente a memória de uma mulher que possuí experiências ruins sobre o passado. 

No filme, Wight colocará o assédio e objetificação do corpo de Sandie dentro de um contexto que, à primeira vista, não pesará tanto, afinal, os ataques a Sandie dão margem para a defesa do agente, Jack. Essa sequência inicial pode gerar a impressão inicial de um amor rebelde que, inclusive, é aprovado por Eloise, Eloise está vendo um homem apaixonado defender sua amada de algo até então irrelevante. Outra distorção dos filmes de época.

Com o frequente retorno de Eloise ao passado, a admiração por Sandie torna-se preocupação, afinal, a jovem do século XXI começa a perceber que aquela Soho sessentista não é igual a Soho vendida em suas músicas e filmes. Sobre domínio de Jack, Sandie torna-se dançarina auxiliar de um cabaré frequentado predominantemente por homens da alta sociedade.

Não suficiente, ainda com a falsa promessa de fazer de Sandie uma grande cantora, Jack obriga a jovem a dormir com homens influentes, afirmando que essas noites facilitariam o caminho de Sandie para o estrelato. Enquanto Sandie tenta se rebelar ao fugir de Jack, percebemos que o seu caso não é único, assim como Sandie, encontramos várias outras jovens, algumas pronunciando que aquilo (aquele trabalho) não era o que pensavam, outras usando entorpecentes como uma válvula de escape, assim como várias simulações sexuais entre tais meninas e os homens afortunados.

Diante da grande quebra de expectativas sobre o passado uma vez vivenciado, Eloise que no início ansiava pelas noites de sono, após se deparar com a realidade de uma parcela da sociedade feminina, não quer voltar, teme retornar. A jovem não conhecia esse lado dos anos 60, afinal, esse não é os anos 60 que normalmente estamos habituados a consumir. Edgar Wright deixa bem claro: é preciso ter cuidado com o que desejamos e pensamos sobre o passado, principalmente se pertencemos a uma minoria.  

A advertência em Noite Passada em Soho e sua crucial necessidade

Podemos, enfim, resumir o filme de Edgar Wright como um terror social no qual a boa nostalgia é vencida pelo olhar mais crítico. O filme alerta: o passado até pode ser atrativo, mas, se analisarmos corretamente, há inúmeras adversidades que foram ignoradas pelos portadores da memória dominante. Noite Passada em Soho dá luz a uma delas: A recorrente e atemporal exploração sexual de mulheres.

Disponível no Telecine.

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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