Anticlericalismo e realismo crítico no cinema de Marco Bellocchio
Por Leonardo Lima*
Aos 84 anos, o italiano Marco Bellocchio inegavelmente se constitui como um dos últimos cineastas a abordar a história e a política de frente, sem tergiversações nem meios-termos condescendentes, ao mesmo tempo em que faz isso a partir de um viés psicológico bastante vigoroso, estabelecendo camadas múltiplas para o agir existencial de seus personagens – estes, inclusive, não raro refletem aspectos e situações vividas pelo próprio diretor no passado, no âmbito familiar, algo já feito por ele em obras como De Punhos Cerrados (1965), Olhos na Boca (1982), entre outras.
Em seu mais recente filme, o longa ficcional O Sequestro do Papa – Rapito, título original -, Bellocchio viaja no tempo, até o século XIX, para tratar de um dos capítulos mais infames da história recente da Igreja Católica Apostólica Romana: o caso envolvendo o garoto judeu Edgardo Mortara (Enea Sala / Leonardo Maltese), secretamente batizado como cristão por sua babá católica e que, em virtude disso, foi forçosamente separado de sua família, por ordem do cardeal Feletti, da Bolonha, como consequência de uma lei em vigor nos Estados Pontifícios, a qual previa que crianças oficialmente cristãs não podiam ser criadas por judeus, ainda que fossem seus genitores – vale lembrar que, até o período anterior ao movimento de unificação da Itália como Estado-nação (Risorgimento), a porção central da Península Itálica era uma nação soberana governada pelo então papa Pio IX (Paolo Pierobon).
Desde o início de O Sequestro do Papa percebe-se a preocupação de Marco Bellocchio em situar o espectador frente ao conturbado contexto sociopolítico no qual a trama se desenvolve. O resultado é uma experiência imersiva, conseguida através de uma direção de arte que privilegia uma construção realista e plasticamente grandiosa dos momentos-chave da narrativa, a exemplo do primeiro encontro do pequeno Mortara com Pio IX em Roma. Não há como não se impressionar com os detalhes e a maneira como é feita a decupagem das cenas, fazendo com que cada plano assuma uma natureza pictórica vívida e impactante, tal como se estivéssemos diante de uma obra de arte.
Importante destacar que a perspectiva subjacente à mise-en-scène se enquadra nos termos do chamado realismo crítico; este, no cinema, busca transcender a simulação de uma realidade de caráter ilusório. Para tal, Bellocchio não se contenta em apenas contar, de modo passivo, a história do rapto de Edgardo Mortara; na verdade, ele vai muito além, na medida em que consegue evidenciar relações sociais tão comuns àquele período histórico, mas não visíveis à primeira vista, como, por exemplo, as implicações da autoridade papal quase sem limites na vida cotidiana das pessoas, ou, ainda, o antissemitismo disseminado sem pudores, estimulado até mesmo pela Igreja Católica em sua sanha de domínio das almas e dos corações.
Outro aspecto de destaque é o modo como essa abordagem realista crítica pontualmente é afetada pela inserção de elementos cuja artificialidade salta aos olhos, mas que acaba caindo como uma luva para reforçar o tom da crítica anticlerical levada a efeito. O ápice disso se dá numa cena eivada de simbolismo metafórico, na qual Mortara, após um ato radical perante o Cristo crucificado, vê expurgado o seu sentimento de culpa quanto à morte de Jesus de Nazaré na cruz, algo carregado por ele e seus antepassados há muitas gerações e que, até os dias atuais, serve para fomentar o ódio contra judeus em todo o mundo.
Se até aqui foram diversos os elogios à maneira como a narrativa é conduzida em termos de seu posicionamento crítico frente aos acontecimentos histórico-políticos, é necessário trazer à baila um importante senão: à medida em que a trama avança no sentido da resignação de Morata frente a fé católica, o filme passa a amontoar um lastro de eventos cada vez mais não necessariamente conectados de maneira direta, entre si, no tempo – meio que o aproximando das cinebiografias à moda Wikipedia produzidas na atualidade -, o que leva à gradual perda do fascínio, da força e da clareza dos eventos em torno de Edgardo Mortara, até tudo desembocar num final que deixa mais dúvidas que certezas sobre aquele homem e quais teriam sido as consequências daquele rapto, sofrido por ele ainda criança, em sua constituição psíquica como indivíduo.
De todo modo, é impossível não reconhecer a excelência do trabalho de Bellocchio neste seu novo filme, provavelmente um dos melhores de sua longeva carreira. O Sequestro do Papa concilia a tradicional crítica social que perfaz a filmografia do diretor, agora posta a serviço da narração de um controverso episódio cujo desenrolar afetaria os rumos da própria existência da Itália como país, com uma abordagem capaz de estabelecer, discursivamente, um olhar para aquilo que está entranhado no tecido social, mas costuma não ser visível a uma primeira mirada. Tem-se, aqui, um marco emblemático de como explorar fatos históricos no cinema à luz de uma contextualização aprofundada do passado – uma atitude que poderia muito bem ter sido seguida por Ridley Scott em Napoleão (2023), o que provavelmente teria proporcionado ao público uma experiência cinematográfica mais complexa e condizente com a História (com H maiúsculo). Reconhecido, mas não tão conhecido, o italiano Marco Bellocchio é um diretor que merece e deve ser (re)descoberto pela cinefilia contemporânea.
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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!