O SIGNO DO CAOS

Vinte anos da obra-prima derradeira de Rogério Sganzerla

Leonardo Lima*

Nota: 10,0

Sinônimo de liberdade criativa levada às últimas consequências, Rogério Sganzerla facilmente pode ser considerado o mais radical e transgressivo cineasta da história do cinema brasileiro. O Signo do Caos, último filme do diretor, cujo lançamento se deu em 2005, posteriormente ao seu falecimento no ano anterior, trata-se de master piece que coroa o brilhantismo de uma filmografia marcada pelo ímpeto obcecado de alguém comprometido com a ideia de erigir um cinema genuinamente encarnado de brasilidade.

No filme, o pano de fundo é o início dos anos 1940, época em que o celebrado diretor Orson Welles sonhou filmar um documentário sobre o nosso país, It’s All True (É Tudo Verdade), mas viu frustrada sua iniciativa após intervenção de autoridades do governo Vargas e corte do financiamento estadunidense. Aproveitando-se desse gancho histórico, e de todo o mistério em torno do desaparecimento por décadas do material que fora gravado, Sganzerla constrói sua narrativa ficcional nada convencional, repleta de situações que exprimem com humor proverbial deprimente, em termos metafóricos, a inculta e obscura realidade social, política e cultural brasileira, especialmente no que tange à nossa produção cinematográfica, historicamente frágil e intermitente.

Sganzerla exibe a rebeldia de sua genialidade por intermédio da coordenação do caos imposta à mise-en-scène, fugídia ao virtuosismo formalista, mas em completa sintonia com a premissa de avacalhar quando não se pode fazer nada, tão cara ao diretor. Deste modo, O Signo do Caos recorre a um exaustivo exercício de deslocamento funcional da imagem e do som, de modo a retrabalhar esses elementos com vistas ao seu esvaziamento semântico e a conseguinte transformação dos mesmos em signos ideais à ocupação aleatória de novos significados, resultantes de uma proposta por definição caótica quanto ao reordenamento da sintaxe cinematográfica. Isso acaba se revelando, portanto, graças à fragmentação da montagem do filme, que abusa de repetições dos planos, desencontros entre o que é visto e falado (em sua maioria através de ditos e provérbios populares) e uma concepção muito particular na dinâmica das ações de suas personagens no espaço-tempo.

É preciso falar a respeito das duas “metades” que compõem a derradeira obra sganzerliana. A primeira parte, de estilo noir, serve para emular muito bem uma atmosfera própria ao período histórico em que o filme se passa. Fotografia toda em preto e branco, que não faz qualquer esforço para agregar beleza em si, trata-se de recurso usado de maneira pertinente pelo diretor para remeter ao objeto de interesse de Wells em seu documentário: mostrar o Brasil autêntico, jogado para debaixo do tapete da história porquanto não agradar aos governantes e às elites locais a ideia de exibir, no exterior, a imagem de um país composto por pessoas “feias” e “sujas”, os favelados e pescadores de aldeias à beira-mar.

Por sua vez, a segunda parte do filme é toda colorida e mais séria na ambientação dramatúrgica; porém, vazia de vida, tal como é a existência das classes dominantes do país e a própria concepção de cinema projetado por elas, que deveria se voltar para mostrar um Brasil predominantemente branco, cujos dilemas centrais se resumissem a problemas existenciais como a perda do dinheiro para a compra do imóvel ou o pertencimento de um anel de ouro.

No cinema brasileiro do século XXI, poucas obras conseguiram ser tão engenhosas e poderosas imageticamente como O Signo do Caos. A despeito de sua visível limitação orçamentária, o filme inegavelmente carrega consigo a assinatura da autoralidade de Rogério Sganzerla à frente da direção. Não bastasse a presença do DNA do diretor, algo nem um pouco descartável, tem-se aqui um dos melhores trabalhos do cinema nacional nas últimas décadas. Antifilme assumido, tal como descrito em seus créditos iniciais, O Signo do Caos, por intermédio de seu metalinguismo narrativo, tem o potencial de iluminar os caminhos para que cineastas de todo o país saibam para o que e como olhar quando decidirem ligar suas câmeras e encarar o(s) Brasil(is) que Orson Welles tentou captar mas fora impedido.

 Título original: O Signo do Caos

Direção: Rogério Sganzerla

Ano de lançamento: 2005

País: Brasil

Duração: 80 minutos

Disponibilidade: YouTube

*Recifense, 40 anos, sociólogo. Antirracista, aliado do feminismo e das causas indígenas e queer, torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantém no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil no Letterboxd. Integrante do Podcast Cinema em Movimento e dos sites TemQueVer Cinema e Club do Filme.

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