O Velho-Oeste de Kelly Reichardt

Por Sthefaniy Henriques*

Por cerca de 30 anos, o faroeste foi um dos gêneros cinematográficos mais populares dos Estados Unidos até que durante a década de 1960 as produções sobre heróis brancos durões em filtros amarelados começaram a declinar. Atualmente, a produção e mercado para histórias situadas no Oeste é cada vez mais ínfima e, em comparação aos filmes da era de ouro do gênero (entre 1940 e 1950), bem distintas. O faroeste se transformou e filmes como Vingança & Castigo (2021), Relatos do Mundo (2020) e Ataque aos Cães (2021) demonstram a evolução acerca do gênero que se tornou mais consciente sobre a história dos Estados Unidos e, consequentemente, mais consciente sobre si.

Nessa leva moderna de filmes sobre o Oeste, Kelly Reichardt é um nome que se destaca ao dirigir duas obras-primas ambientadas no Oregon durante a expansão territorial dos Estados Unidos, são elas O Atalho (2010) e First Cow – A Primeira Vaca da América (2019). Tais filmes não apresentam apenas um olhar distinto dos faroestes clássicos acerca de papeis de gênero, relações étnicas, disputa entre bem e o mal, vingança e moralidade. Mais que isso, ambas produções de Reichardt são experiências imersivas, silenciosas e minimalistas que fazem parte do emblemático cinema lento da diretora, um cinema que privilegia a dilatação temporal, o uso ilimitado de enquadramentos distantes e tomadas longas que ampliam a noção de realismo das histórias a serem contadas.

Desta forma, O Atalho e First Cow se apresentam como produções que para muitos podem aparentar ser um anti-faroeste, enquanto para outros os filmes se apresentam como um faroeste revisionista. Seja como for, o velho-oeste de Kelly Reichardt é monótono, longo, belo e poético, mas, acima de tudo, nos diz algo sobre eventos do nosso século.

O Atalho: uma perspectiva feminina sobre um líder perdido

 Baseado em uma história real, em O Atalho nos juntamos a três famílias de colonos que estão viajando pelo Deserto do Oregon sobre liderança de Stephen Meek, um caçador de peles que afirmava conhecer uma rota alternativa e mais rápida através do deserto. Na história real, assim como na adaptação de Reichardt, Meek se perde. Em 1845, com os conflitos entre brancos e nativos acontecendo na região, a rota principal para Oregon, através de Idaho seguindo por Blue Mountains era inviável. Desta forma, o atalho era incentivado.

Meek, de acordo com o historiador Brooks Ragen, confundiu a aparência da montanha de Steens com a de Cascades, o que levou o grupo de colonos cada vez mais para o oeste, para dentro da sálvia e de rochas, onde água e comida eram escassas. No filme, uma das mulheres da caravana, vivida por Michelle Williams, é quem percebe que Meek está perdido. Diante de um ambiente hostil, a mesma resolve guiar aquela caravana em busca de água ao estabelecer diálogos não incompreendíeis com um nativo americano capturado durante o caminho.

Diante de tal premissa, o filme foi muitas vezes e, por inúmeras pessoas, associado ao governo Bush, algumas vezes como alegoria ao Iraque, outras como uma alegoria a economia neoliberal. Reichardt, ao falar sobre o filme para a revista Filmmaker nega que seja sobre a Administração de Bush, mas deixa claro que a história estadunidense é tão repetitiva que ela certamente poderia produzir o filme em qualquer contexto.

Para além de uma interpretação política partida da recepção (pública ou crítica), o que vemos em O Atalho é uma subversão da estética, temática e dos padrões, em modo geral, do gênero de faroeste. Desta vez, a câmera de Reichardt se volta para as mulheres na busca de uma aproximação autentica das viajantes, algo não habitual para o gênero que, em sua era mais clássica, conformava personagens femininas como secundárias. Essas mulheres, entretanto, não são da forma que podemos assistir nos filmes de faroeste atuais ou clássicos, elas não transmitem a feição do We Can Do It ou qualquer vestígio de empoderamento em suas roupas, hábitos ou formas de tomar decisões, mas também não estão dentro da esfera de olhar masculino, não são sexualizadas ou se apresentam como personagens tomadas pela emoção.

Pelo contrário, elas usam vestidos longos em tons pasteis e cobrem suas faces com gorros que prejudicam a visão periférica e, naturalmente, também afeta nossa leitura sobre elas. Elas surraram no falar e não fazem absolutamente nada diferente dos padrões de gênero estabelecidos da época, elas lavam, cozinham e cuidam da família. Emily (Michelle Williams) ao controlar aquela caravana, não fará quase nada distinto do que fizera antes. Sempre como conselheira de seu marido, Emily agora aconselha um grupo, seu comando será através de seu intelecto, mesmo que, às vezes, precise levantar uma arma carregada para se obedecida.  

Reichardt brilhantemente recupera a mulher, uma figura esquecida ao falar de qualquer tema associado ao Oeste estadunidense durante o século XIX. Mas não se limita a isso, a diretora também apresenta a própria reavaliação da riqueza prometida para quem buscou aquela região. Em certo momento, é encontrado ouro em meio a seca, mas de que valerá aquele ouro se ninguém pode bebê-lo para matar sua sede e livrar-se do desespero? Em O Atalho, o desejo de enriquecimento estiveram perto de matar um grupo de migrantes que só fora salvo por uma mulher e sua capacidade de comunicar-se com um nativo, mas será em First Cow que veremos Reichardt trabalhar de fato com a fatalidade do capitalismo.

Fisrt Cow:  um conto sobre amizade e capitalismo

 Reichardt inicia First Cow com um plano de estabelecimento que, através de símbolos inseridos na tela, vão nos remeter aos tempos atuais. No plano vemos um navio cargueiro e uma natureza controlada aos redores do rio Columbia. Após acompanhamos o navio cruzar a tela, a câmera muda o objeto de foco e começamos a seguir um cão e sua dona nas margens do rio desenterrando esqueletos humanos jazidos lado a lado.

Essa espécie de prólogo tomada pela coloração cinza e um tanto minimalista dá lugar a uma Oregon de 1820 abundante em fauna e flora através do belíssimo trabalho de fotografia de Christopher Blauvelt. É nesse cenário que Cookie (John Magaro), um cozinheiro bondoso ajuda King Lu (Orion Lee), um imigrante chinês procurado por assassinato. Com a amizade concretizada, os dois amigos vão buscar riqueza para possuir um hotel e padaria com os recursos que tinham de disponível: o talento de Cookie para cozinhar, a mente empreendedora de Lu para cuidar dos negócios e a vaca de um inglês afortunado da região, no qual ambos roubarão leite todos os dias durante a calada da noite. Lu vê tal atitude como correta, afinal, para ele ‘‘Não há maneira de um pobre homem começar. Você precisa de capital ou de um crime’’.

Lu, ao vender os bolinhos feito por Cookie no que seria o centro comercial da região, aplica a lei de oferta e demanda. Lu pede para que Cookie frite diariamente uma quantidade limitada de bolinhos, com o propósito de aumentar os preços e fazer os clientes cobrirem ofertas uns dos outros quando as unidades estivessem quase esgotadas. Entretanto, a crítica mais ferrenha ao capitalismo não está na história dos dois amigos pobres que vão se aproveitar da lógica capitalista para obter lucros, afinal, eles mal chegam ao começo de sua empreitada para o sucesso. A crítica está na figura do Chief Factor (Toby Jones), o proprietário da vaca.

O inglês afortunado tem como negócio a exportação da pele de castor para produção de chapéus na Europa. Para ele os animais são ilimitados na região e sua maior preocupação é a rede de exportação. Ao saber que o mercado europeu futuramente pode se fechar para pele de castor, o mesmo tem ambição em continuar no mercado, desta vez vendendo para a China. Ao anunciar tal solução, o pai da esposa de Chief desdenha com bastante humor. O senhor risonho é um nativo americano e o mesmo não consegue entender aquele hábito europeu de caçar e não consumir o que é capturado. Segundo André Francisco em seu artigo Amizade e o capitalismo em First Cow de Kelly Reichardt, para os nativos-americanos ‘‘a caça dos castores é vista exclusivamente como meio de subsistência. A sustentabilidade desta relação homem-natureza é essencial para a existência de uma oferta alimentar estável’’.  Em vista disso, ao contrário do sogro, Chief é indiferente a relação sadia entre homem-natureza, Chief apenas quer explorar.

Ao destacar a figura do Chief e exibir os primeiros passos do capitalismo nos Estados Unidos, Reichardt se comunica com assuntos atuais. Ao ceder uma entrevista para a MUBI, Reichardt afirma que resolveu contar essa história porque o momento era propício para isso, segundo ela ‘‘É um bom momento para contar a história da América como um lugar de imigrantes. Sobre as estruturas de poder, o lugar do capitalismo desde o início, sobre os recursos naturais sendo exterminados e sobre como nós ignoramos todos os sinais vindos da natureza’’.

Para encerrar com o filme com grandiosidade, após fugirem da região devido a Chief descobrir que esteja sendo roubado, Cookie e Lu morrem de fome ao deitarem para descansar durante a fuga. Esse final nos leva ao início do filme, afinal, finalmente sabemos a quem pertenceu as ossadas desenterradas pela menina e o cachorro. Desta forma, a mensagem é clara: os Estados Unidos atuais descansam acima dos seus antepassados eliminados por um sistema que sempre foi desigual.

Lentos? lentos, mas ainda sim faroestes e indispensáveis.

 Kelly Reichardt, além de ser um nome obrigatório para conhecer o cinema independente estadunidense, é uma diretora que possui muito afeto e conhecimento sobre o estado do Oregon, não é por menos que todos os seus longas foram gravados no Estado. Tal afetividade e proximidade serão nítidos diante das histórias que Reichardt conta em O Atalho e Fisrt Cow. Reichardt deixa de lado os mitos, as construções típicas do faroeste e torna o processo civilizatório no Oeste um procedimento onde mais se questiona que se endeusa.

First Cow está na plataforma Mubi

O Atalho pode ser visto no Prime Vídeo

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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