O Zumbi Haitiano de Hollywood

Em 2010, Kyle Bishop afirmou em seu livro ‘‘The Rise and Fall (and Rise) of the Walking Dead in Popular Culture’’ que os ataques terroristas sofridos pelos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 abriram espaço para que os zumbis voltassem a cultura popular, ao ‘‘(…) desencadearam talvez a maior onda de paranoia e ansiedade na sociedade americana desde o ataque japonês a Pearl Harbor em 1941’’.

Uma vez que o trauma não podia ser explorado em filmes convencionais – até O Homem Aranha de Sam Raimi teve algumas cenas cortadas e trailer banido devido a captura das torres do World Trade Center – Bishop constatou que os filmes de zumbis se tornaram o mais apropriados para explorar a consciência americana pós 11 de setembro, causando a renascença da popularidade de zumbis em 2006.

Algo que rouba atenções na pesquisa de Bishop, entretanto, é a sua distribuição na cronologia dos filmes de zumbi, atribuindo o período de desenvolvimento a década de 1970, a época clássica durante a década de 1980 e a fase mais paródica/autorreferencial em 1990. Ao longo do livro, torna-se perceptível que tais ciclos se comunicam, inevitavelmente, com a sociedade no qual foram criados.

Outro fator para além dos picos de produção e fases estabelecidas por Bishop que merece atenção é o início da contagem. Há de se notar a introdução tardia de um zumbi nas telonas, datando sua estreia – até onde se tem registos – apenas em 1932. Tal início, entretanto, não pode ser visto de maneira ‘‘inocente’’, apenas como uma espécie de experimento acerca de nova criatura para o cinema de horror. Assim como todos picos exibidos, o primeiro filme com tal criatura expandiu um pensamento que já era bastante comum na época: a percepção do Haiti como um lugar exótico e primitivo. 

Uma rápida história do Haiti de 1442 a 1932 e sua relação com os Estados Unidos

 A chegada de Cristóvão Colombo ao que ele denominou de ‘‘Novo Mundo’’ aconteceu na região caribenha. A primeira colônia da Coroa Europeia no novo continente foi nomeada de Hispaniola, onde atualmente se encontra a República Dominicana e Haiti.

As terras foram anexadas devido a motivos econômicos e comerciais. Em primeiro plano, os espanhóis, segundo Jean Grugel, tentaram extrair riquezas das ilhas por meio da imposição de impostos e tributos à população indígena. Posteriormente, devido uma certa pressão interna da Igreja Católica e da pequena nobreza espanhola, a colonização foi evidenciada. Dessa maneira, foi adotado em 1503 um sistema conhecido como encomienda, que consistia na população indígena trabalhar na extração de ouro entre os colonos – ou nas terras dos colonos, os encomienderos – em troca de evangelização e salários baixíssimos.

Em 1528, os estoques de ouro estavam esgotados e Hispaniola perdeu sua importância colonial. O momentâneo desenvolvimento regional, mesmo tão curto, comprometeu a população nativa Taíno que foi, basicamente, extinta.

Em 1969, Hispaniola passa a chamar-se Saint Domingue, quando os franceses tomaram posse da terra ‘‘abandonada’’. Como colônia francesa, Saint Domingue, tornou-se um grande produtor de açúcar, trazendo cada vez mais escravos do continente africano para o trabalho nas monoculturas. Grugel, inclusive sustenta que, pouco antes da Independência do Haiti, os escravos compunham 80% da população do país.

Em 1791, o comandante negro Toussaint L’Overture inicia a revolução para a independência, mas apenas em 1801 se impõe como governador vitalício da ilha, irritando Napoleão Bonaparte que, além de prender L’Overture, colocará a ilha novamente como um território francês. Os haitianos, no entanto, não desistiram de sua independência e em 1904 o Haiti se tornaria a primeira nação independente da região quando os ex-escravos Jean-Jaques Dessalines e Henri Christophe dão início a uma segunda revolta.

A independência, entretanto, ruiu a economia e transformou o país em um campo de guerra de disputas pelo poder. Entre instaurações de impérios e repúblicas, houve uma série de assassinatos, renuncias e golpes acerca dos líderes haitianos, até o ano de 1915, quando os Estados Unidos ocupam militarmente o país sob o pretexto de acabar com a instabilidade política. 

O imaginário estadunidense sobre o Haiti

 Como aponta Paula Gomes em sua dissertação ‘‘Terra dos Mortos: O espaço narrativo nos filmes de zumbi’’, a recepção da cultura do Haiti pelos estadunidenses aconteceu de forma ambivalente: houveram aqueles que enxergaram a cultura como primitiva, e outros que se fascinaram pela mesma ao ponto de produzirem literaturas de viagem.

Acerca das produções, boa parte estavam voltadas a duas heranças da cultura africana: o vodu e o mito do Zumbi, ambas que estão interligadas. O zumbi, de acordo com as crenças regionais, será caracterizado como um cadáver humano desprovido de alma, retirado da sepultura por meio do vodu para trabalhar em plantações de cana-de-açúcar.

Dado o fluxo de estadunidenses transitando pelo Haiti e a aproximação entre ambos países devido ao assentamento do exército no país, as histórias de horror relacionadas aos costumes haitianos começam a se popularizar. Para além do zumbi haitiano, as histórias traziam um discurso norte-americano do período, pregando a região como bárbara, primitiva. Tal construção, segundo a doutora em ciências sociais Maria Barros, também foi usada como uma justificava de intervenção no país.

Zumbi Branco (1932)

 Dirigido por Victor Halpering, Zumbi Branco é o primeiro filme da história sobre a criatura. No filme, um casal de americanos, Neil e Madeleine, vai ao Haiti a convite do milionário estadunidense Beaumont, este que havia se apaixonado por Madeleine em um encontro anterior. Como Madeleine ama Neil e não está disposta a deixa-lo, Beaumont contata um feiticeiro para que ele a transforme em zumbi, podendo, dessa maneira, finalmente tê-la para si.

Se tratando da composição do país e de seus costumes, o filme aparenta ter grande inspiração no livro The Magic Island (1929), obra que se tornou muito popular nos Estados Unidos. Seu conteúdo é uma produção de viagem do explorador William Seabrook sobre sua experiencia no Haiti.

(Na primeira imagem, ilustração do livro de Seabrook feita por Alexander King. Na segunda imagem, uma cena do filme Zumbi Branco)

O filme, entretanto, se distancia de qualquer discussão acerca da história e cultura haitiana. Zumbi Branco secundariza o mito do zumbi e sufoca qualquer possibilidade de crítica ao passado colonial do país ou, até mesmo, a intervenção dos Estados Unidos a partir de 1915 e suas consequências. 

O fator crítico que o filme impulsiona através do terror não é voltado a mortos tornarem-se escravos ou o que esses zumbis podem fazer a terceiros, mas sim ao risco de uma protagonista branca – e americana – ser transformada em uma morta-viva. Medo que Bishop resume muito bem ao caracteriza-lo como um temor que reside na possibilidade de o ocidente ser dominado pelo colonizado.

Desse modo, a história é construída com base em estereótipos e imparcialidade para que o temor não seja voltado a figura do zumbi, mas todo o espaço do Haiti. Com esse pensamento, o vodu, religião popular do povo haitiano, será caracterizado como uma feitiçaria maligna realizada apenas para fins danosos por figuras maléficas. Não é por menos que o único feiticeiro que se vê no filme é Murder Legendre, homem que roubava mortos de seus túmulos para fazê-los trabalharem em suas plantações e também escravizava seus inimigos brancos.

A representação dos haitianos, por sua vez, também ajuda a construir o temor pelo país, afinal, o filme dá continuidade a uma visão imperialista do ocidente sobre a passividade e a de submissão de um povo considerado inferior. As figuras negras presentes na produção, principalmente as que interpretam zumbis, são desprovidas de protagonismo ou vontades, de voz ativa, tornando-se, de acordo com Gomes, apenas parte da mise-en-scène, parte da ambientação do filme.

Esse cenário, centrando uma americana em perigo, indica que em plena época onde o excepcionalíssimo americano vigorava, tornar-se zumbi, ou seja, tornar-se passivo a uma outra cultura ou misturar-se a ela – a partir da miscigenação, do casamento – era o pior dos cenários para um ianque, figura superior que nasceu na terra da liberdade.

Algo muito próximo da proposta de Zumbi Branco durante a década de 1930 pode ser encontrado no filme Ouanga (1936, e disponível no Youtube). Habitado no Haiti, uma dona de plantação negra e com conhecimento do vodu, ao ser rejeitada pelo seu vizinho branco e americano que se casa com outra, transforma defuntos em zumbis para se vingar, planejando sequestrar Eve, a esposa branca do vizinho. Novamente, além da mensagem que não incentiva a miscigenação, o Haiti, sua cultura e população sofrerão uma vilanização em prol de uma narrativa que centrará a defesa do ocidente através de uma figura feminina.   

 A Morta-Viva (1943)

 A Morta-Viva, filme dirigido por Jacques Tourneur (também conhecido por dirigir Sangue de Pantera e Fuga do Passado) chegará aos cinemas dos Estados Unidos em um contexto completamente diferente a aquele que recebeu Zumbi Branco. Em 1943, estava próximo de se completar 10 anos que os Estados Unidos haviam deixado o Haiti após uma transferência formal de poder entre os governos e, além disso, a Segunda Guerra Mundial havia determinado de vez quem eram os verdadeiros inimigos da nação e seus aliados.

Devido a Política da Boa Vizinhança, produções que representassem o Haiti negativamente – ou qualquer outro espaço do continente americano – estavam fora de cogitação, dessa maneira, os zumbis deixaram de assustar e foram entreter, os filmes de terror tornaram-se comédias. Menos A Morta-Viva, a produção mais fora da curva sobre zumbis caribenhos na década de 1940.

Bishop, para além da qualidade técnica do filme, chama atenção para o trabalho de pesquisa de pré-produção. Segundo o autor, a equipe teve que estudar sobre o vodu, fazer longas observações de trabalhadores locais do Haiti e entender o dialeto francês para enriquecer os diálogos e ritos.

Desse modo, e vendido como uma adaptação do clássico romance Jane Eyre (1844) da autora Charlotte Brontë, nascia a história de Betsey, uma enfermeira que aceita ir para Saint Sebastian – uma ilha fictícia usada em outras produções da RKO para omitir o nome do Haiti – para cuidar da esposa do fazendeiro americano Paul Holland. Após se acomodar e começar a conviver com a família, Betsey começa a desconfiar que a sua paciente é um zumbi.

Mesmo com um tratamento de produção diferente, mais apurado em relação as obras de 1930 e 1940, há um debate historiográfico acerca do filme e de sua representação sobre o Haiti. Jaime Russel, por exemplo, afirma que ‘‘Enquanto os filmes de zumbis anteriores usaram explicitamente os mortos-vivos para sugerir a alteridade primitiva do Caribe e sua população negra, A Morta Viva volta o foco para o próprio mundo branco. Os zumbis (…) são aterrorizantes não porque são símbolos de alguma cultura primitiva, mas porque sua existência não pode ser explicada.”

Gomes, no entanto, discorda da ausência de racismo em A Morta-Viva. Segundo a própria, o filme recupera dois elementos que já se havia visto em Zumbi Branco: O espaço caribenho como ameaça e uma mulher branca em risco. Além disso, ela ressalta que o zumbi responsável pelo sequestro de Jessica se chama Carrefour, nome que em francês significa ‘‘cruzamento’’, o que completa os mesmos temores apresentados, inclusive, no igualmente racista Ouanga.

O Declínio dos Zumbi Haitiano em Hollywood e a ausência de uma contrarresposta

 Os filmes da década de 1930 e 1940 adotaram o mito do zumbi e o deturparam para vender aos estadunidenses uma visão primitiva do Haiti e de seus costumes, ressaltando a maldade do país, a passividade de seu povo e a defesa de um pensamento eugênico, desincentivando miscigenação para aqueles soldados ou imigrantes estadunidenses que foram ao Haiti quando a intervenção foi instaurada.

Em 1960, quando o Haiti começava a sofrer com a ditadura do cruel François Duvalier (Papa Doc), o que poderia ser uma munição para filmes críticos sobre o país e que, inclusive, poderia ressignificar o zumbi haitiano, cai em desuso. Nos anos finais da década de 60, os filmes sobre vodu e zumbis do Haiti desapareceram, dando lugar a uma nova tendencia que se inicia com A Noite dos Mortos Vivos do diretor George A. Romero: o perigo de uma invasão interna, uma invasão nos EUA. O que não surpreende, afinal, dado o panorama da criatura nas primeiras décadas, o zumbi haitiano sempre foi sobre os EUA e seus temores.   

Enquanto escrevia a matéria, passei horas a fio pesquisando produções do Haiti sobre zumbis na esperança de enriquecer o conteúdo, mas, principalmente, contrapor a visão americana com uma visão local. Infelizmente, devido a um fraquíssimo número de produções locais – dada toda a sua história e longas ditaduras – o país ainda não teve seu direito de resposta.

Zumbi Branco e A Morta-Viva estão disponíveis no Youtube.

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