A nação chilena despida de suas vestes manchadas de sangue
Por Leonardo Lima*
Nota: 9
Certamente você já ouviu falar que o povo brasileiro foi formado graças à mistura entre o branco europeu, o negro africano e o indígena local. Essa ideia de uma miscigenação harmoniosa e culturalmente exitosa, que constitui o chamado mito da democracia racial, remonta ao pensamento do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre acerca de nossa formação social, apresentada em sua obra Casa-grande e senzala (1933).
Mas você sabia que o Chile também possui o seu próprio mito de criação da nação? Nesse caso, a mistura de elementos sociais teria envolvido autóctones (de origem mapuche, sobretudo), brancos europeus e mestizos – estes últimos como o resultado do cruzamento entre os dois primeiros. Em Os Colonos, neowestern revisionista dirigido por Felipe Gálvez, o processo de formação nacional chilena é questionado a partir de um recorte histórico que situa a narrativa no início do século XX, época em que se consolida a presença do colonizador europeu na fria e exuberante Terra do Fogo, região ao sul do país.
Com o objetivo de “limpar” suas terras, repletas de índios (sic!), e, assim, criar uma rota segura para o transporte de lã de ovelha – o ouro branco daquelas paragens -, o latifundiário José Menéndez (Alfredo Castro) contrata os serviços do ex-militar britânico Alexander McLennan (Mark Stanley) e do caubói norte-americano Bill (Benjamin Westifall). Ao partir em sua expedição de morte nos confins da Patagônia, McLennan leva consigo Segundo (Camilo Arancibia), um mestizo hábil no manejo da pistola e de poucas palavras, embora sempre atento àquilo que ocorre ao seu redor.
O trabalho de fotografia visto no longa impressiona não apenas pela beleza genuína de suas composições de cena saturadas, destacando a assombrosa vastidão da planície aos pés da Cordilheira dos Andes, mas, também, por ser fundamental para conferir àquele lugar uma desolação da qual não se pode fugir, tornando-o propício à sedimentação da lei do mais forte como imperativo categórico da conquista de poder e riqueza. O diálogo, o agir comunicativo pautado pela troca civilizada e racional de ideias, não passa aqui de um mero acaso, um tropeço breve em meio a necessidades mais urgentes de se fazer valer a força como instrumento de dominação, mesmo entre aqueles supostamente iguais – força direta, tendo por base os códigos de uma masculinidade hegemônica, como nos encontros do trio chileno com soldados argentinos na fronteira e/ou com um coronel britânico em uma praia; ou, ainda, força indireta, de caráter persuasivo, como na visita feita a Menéndez por uma proeminente figura do Estado.
Por sua vez, Os Colonos demonstra coragem ao expor, ainda que por intermédio da ficcionalização, a trágica história real do genocídio cometido contra os povos originários no território chileno (e, por extensão, em toda a América hispânica e portuguesa). Isso é conseguido sem que esse conteúdo de denúncia implícita seja mastigado de modo expositivo, nem alienando o espectador em relação aos acontecimentos em tela, uma vez que mesmo sem qualquer conhecimento sobre a formação social do Chile, é plenamente possível apreender, sem dificuldades, o significado sócio-histórico de tais fatos abordados pela narrativa. Muitas vezes, o olhar distante e entristecido de Segundo é que nos guia nessa silenciosa e dolorosa imersão em uma torrente de violência e barbárie sanguinária levada a efeito contra os legítimos donos daquelas terras. Conforme vemos na cena final, mesmo o Estado, adornado com vestes modernas que evocam a paz com esses indígenas e a sua proteção por meio de garantias legais, mostra-se incapaz de fugir a um discurso impositório, fomentado pela elite branca, o qual visa promover a subjugação de todo aquele que não se adequou suficientemente aos ditos padrões civilizatórios de integração nacional.
Por fim, é justo reconhecer as virtudes em demasia da obra cinematográfica de Felipe Gálvez, estreia do cineasta em longas-metragens. A potência técnico- estética de Os Colonos, do início ao fim, aliada uma abordagem que respeita a história do país como fonte de inspiração narrativa – sem fazer quaisquer concessões eufemísticas -, fazem do filme um dos melhores do cinema latino-americano nesta década. Aquilo que antes era reservado apenas a notas de rodapé nos livros escolares, agora ganha a visibilidade necessária, podendo, inclusive, somar-se aos esforços protagonizados pelos próprios mapuches no intuito de que os chilenos revisitem o seu passado e, a partir de uma honesta reflexão coletiva, ajam com vistas a projetar um futuro diferente, no qual todos realmente se reconheçam em frente ao espelho da nação.
Título original: Los Colonos
Direção: Felipe Gálvez
Ano de lançamento: 2023
País: Chile
Duração: 101 minutos
Onde Assistir: Mubi
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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!