Por Sthefaniy Henriques*
O sociólogo estadunidense Robert Wuthnow em seu livro The Left Behind: Decline and Rage in Rural America afirma que estereótipos geralmente transmitem uma verdade. Tal afirmativa está inserida em um contexto onde o autor fala sobre os estereótipos populares voltados às cidades rurais. Apesar de fazer uma afirmação tão forte, ao longo da leitura, é perceptível que Wuthnow não quer apresentar um juízo de valor quanto às crenças e normas que levam a esses estereótipos. O autor busca entender essas características como parte da vida rural nos Estados Unidos.
Explorando aspectos e características da ruralidade, Wuthnow fez um estudo que procurou explicar as motivações para 62% dos votos rurais terem ido para Donald Trump na eleição de 2016. Então, como o próprio título de seu livro explica: Ele identificou o declínio (da América Rural) e a raiva (de sua população) como os pilares da decisão. A eleição de Trump pouco nos importa neste artigo, afinal, a criadora de Lindas de Morrer sequer poderia imaginar que um magnata com tendências antidemocráticas chegaria à presidência dos Estados Unidos. Porém, eu também me questiono se Lona Williams (a criadora) acharia que, em pleno 2025, seu filme – levemente inspirado em sua vida – continuaria tão atual. Os estereótipos ainda retratam muito bem a América Rural.
Conhecendo Mount Rose
O filme é ambientado na fictícia Mount Rose, Minnesota. Com população de 5.076 habitantes e conhecida por ser a cidade de Freda Hegstrom, a luterana viva mais velha de Minnesota – ironicamente já falecida há anos –, Mount Rose está organizando seu tradicional e anual concurso de beleza, o primeiro passo para chegar ao grande concurso nacional, o Sarah Rose Cosmetics American Teen Princess Pageant. Uma equipe de documentaristas está no local para cobrir a competição.
Mount Rose aparenta ser como qualquer lugar rural dos Estados Unidos. O asfalto da rodovia corta os imensuráveis acres de plantação. O centro da cidade possui os tradicionais prédios de tijolos, abrigando instituições como escolas e lojas que prestam serviços aos moradores. Um pouco distante, é possível encontrar casarões, pertencentes às principais famílias da cidade e, também os ‘‘trailer parks’’, um local que pode abrigar dezenas de milhares de pessoas que moram em um casa-trailer ou um trailer móvel. Quanto à sua população, minorias étnicas e sexuais são vistas ou mencionadas, no entanto, Mount Rose é uma cidade predominantemente branca, heterossexual e cristã-protestante.
A personagem que apresenta Mount Rose a equipe de filmagem é Gladys Leeman. Leeman afirma que os garotos (documentaristas) irão encontrar algo diferente no lugar. Nas suas palavras: ‘‘Em primeiro lugar, todos somos tementes a Deus. Cada um de nós. E vocês não vão encontrar uma ‘salinha nos fundos’ na nossa locadora de vídeos (…) essa sujeira nós deixamos para as cidades do pecado, tipo Minneapolis e Saint Paul’’. Pouco tempo antes de tal declaração, ela respondeu outra pergunta com o mesmo tom. Ao ser questionada se o concurso de beleza era uma boa ideia, afirmou com convicção: ‘‘Sim, claro. Eu sei o que as feministas da cidade grande, que não usam sutiã e não raspam as pernas, dizem. Elas podem alegar que um concurso é antiquado e humilhante para as meninas’’. Sua fala é prontamente reforçada por uma outra integrante da organização, que acrescenta: ‘ridículo mesmo é mulher se vestindo como homem.’’
Particularmente, acho essa introdução a Mount Rose muito reveladora, pois é possível incluir várias características acima como estereótipos que, quer ou não, possuem alguma verdade. As cidades rurais são vistas como lentas, amigáveis, presas ao passado e resistentes à mudança. As normas e condutas mudam lentamente, afinal, o que parece certo para a população da cidade (ser cristão, por exemplo), é o mesmo que parecia certo para seus antepassados. A cidade, então, continuará a ser exatamente do jeito que sempre foi, sem questionamentos da população. Os únicos a questionarem esses hábitos e costumes, são as hipotéticas pessoas da cidade grande, hipotéticas feministas (também da cidade grande) e a equipe de filmagem (que veio da cidade grande).
Conhecendo a população local. Os Leeman: voluntarismo, negócio local e aparente igualdade.
Gladys, Becky e Lester são os Leeman, a família mais rica e poderosa da cidade. Apesar de viverem em um casarão distante, eles possuem muito espírito de comunidade, compreendendo que existe a necessidade da formalização de relações com a população, obrigações e entendimentos comuns.
Como Wuthnow observou, os trabalhos voluntários são tanto sobre bajulação quanto sobre trabalho em projetos. A afirmativa combina completamente com Gladys, a presidente de organização do concurso e uma das vencedoras da competição. A matriarca busca ser bajulada, tanto pelo seu trabalho real no concurso, mas principalmente por sua vitória na competição há anos.
Sobre o primeiro, existe o aspecto do voluntarismo, algo que beneficia a comunidade e a pessoa que se dispõe a fazer o trabalho de maneira não remunerada. O trabalho de Gladys no concurso não é remunerado, no entanto, é um trabalho que contribui para a cidade e a coloca na galeria de grandes – e generosas – pessoas da comunidade. Agora, não podemos nos esquecer que Gladys também quer ser lembrada como uma vencedora. Nessa atitude, existe a reafirmação de ser uma pessoa relevante por suas conquistas pessoais. Embora ser uma vencedora de concurso de beleza possa soar estranho e sem importância para muitas pessoas (principalmente da cidade grande), em pequenas cidades rurais, dado a tradição dos concursos, isso significa entrar para a história, ser bajulada quando possível.
Gladys quer o mesmo para sua filha e Becky segue seus passos. Assim como sua mãe, Becky realiza diversos trabalhos voluntários e é presidente do Lutheran Sisterhood Gun Club, um clube de tiros para mulheres luteranas. Apesar de ser visivelmente mais rica que todas as adolescentes da cidade, Becky está introduzida na sociedade, seguindo, inclusive, o mesmo tecido moral da cidade. Becky preza pela normalidade, é patriótica, cristã fervorosa e, com os trabalhos voluntários, favorece uma falsa imagem de auto-anulação. Becky também quer ser bajulada pela sua aparente entrega à sociedade e isso deve ter uma continuidade. Existe um visível interesse dos Leeman em estabelecer uma tradição: ser uma família que, historicamente, valoriza a comunidade, presta ações não-remuneradas e está sempre nos holofotes devido aos seus feitos e contribuições locais.
Antes de falarmos do pai, é necessário ressaltarmos a ideia de comunidade onde ‘‘todos são iguais’’. O tecido moral da cidade e sua aparente homogeneidade em valores contribuem para tal percepção, mas existe uma outra razão. Segundo Wuthnow, a nobreza local interagir com os moradores que não partilham da mesma riqueza contribui para esse sentimento. Pessoas como Gladys, Becky e Lester estão constantemente em contato com a sociedade, pois frequentam os mesmos locais. A família vai a mesma igreja que os demais, Becky estuda na mesma escola que os demais e Lester emprega e trabalha para servir os demais.
Apesar desse sentimento, eles definitivamente não são iguais e isso nos leva a Lester, o dono de uma loja de eletrodomésticos e móveis. Lester, apesar de se portar como um cara simpático para a comunidade, engana seus clientes, aumentando os preços de seus produtos e buscando mão de obra barata em outros países, como o México. Lester suga a comunidade ao oferecer produtos que definitivamente não são baratos e não contribui economicamente para a comunidade, visto que emprega poucas pessoas do local e prefere contratar mexicanos, pagando-os com tacos.
Os Leeman compõem um dos retratos de sucesso da América Rural. Enriqueceram com um comércio local, mas ainda são humildes, honestos, conectados a comunidade e orgulhosos de chamar Mount Rose de casa. Obviamente, esse retrato é idealizado, mas permanece no imaginário da América Rural.
As Atkins: white trash, ‘‘os outros’’ e perigos presentes na América Rural.
Apesar de nunca serem chamadas no filme de white trash (lixo branco), as Atkins e sua vizinha, Loretta, preenchem vários dos requisitos para serem consideradas como tal. O estereótipo define o seguinte: os white trash são geralmente pobres rurais, incestuosos, sexualmente promíscuos, violentos, alcoólatras, ‘‘alérgicos’’ ao trabalho e estúpidos, seja por consequência do incesto ou falta de escolaridade. Eles podem morar em casas em condições precárias ou em trailers igualmente em condições precárias. Podem receber auxílios do governo ou viver de caridade dos vizinhos.
Annette Atkins, a matriarca, é quem mais garante essas características para a sua família. Annette é uma mãe solteira que vai ser, por exemplo, o completo oposto de Gladys. Annette não apresenta qualquer valor a sua comunidade, não frequenta a igreja ou demonstra humildade e simpatia a comunidade branca ‘‘hegemônica’’. Annette não trabalha, passa a maior parte do tempo bebendo e fumando. Ela deseja que sua filha, Amber, não seja como ela, mas, eventualmente, a encoraja a cobrar caso queira exibir seu corpo para a equipe de filmagens.
Um dos únicos momentos onde Annette aparenta se preocupar com sua filha é quando pressupõe que Amber está grávida. Esse temor não é infundado, pois a gravidez precoce é uma realidade preocupante na América Rural. Em registros que vão da década de 1990 a 2010, a gravidez precoce na América Rural é maior que em áreas suburbanas e grandes metrópoles. A gravidez entre adolescentes na América Rural envolve vários fatores, da visão negativa do aborto à perspectiva de vida após o término do ensino médio.
No filme, no entanto, a gravidez entra no contexto da existente estigmatização por ter feito sexo antes do casamento e/ou por não ter sido responsável o suficiente. Annette parece ter sofrido com essa estigmatização, pois o pai de Amber abandonou a família antes mesmo de Amber nascer. Isso sugere que não houve casamento e que Annette caiu em desgraça. Esse passado reflete o sentimento de Annette de não ter vivido de maneira “correta”, e sua principal preocupação é que Amber tenha o mesmo destino.
Amber, apesar de white trash, é a personificação de uma garota americana tirada de alguma música da conservadora Carrie Underwood. Amber tem dois empregos de meio período, não bebe, não fuma e também não está envolvida em romances (apesar de ser secretamente apaixonada por um garoto). Desse medo, ainda que tenha uma criação ‘‘desastrosa’’, é uma boa menina, honesta, humilde e dedicada. Como a acompanhamos a maior parte do tempo, notamos seu coração puro, perseverança e respeito mesmo quando injustiças acontecem. Esse é o perfeito retrato de uma garota da cidade rural, contudo, é um tanto irônico, mas a comunidade não projeta isso em Amber e sim em Becky.
O fato de ser filha de uma white trash, e portanto, também white trash, interfere na percepção de Amber como alguém a se elogiar, a ter respeito e admiração. Essa observação acaba contrapondo uma visão que as comunidades rurais carregam. Eles pensam que são iguais, que não enxergam classe em suas relações, no entanto, esse discurso se aplica apenas aos ricos. Quando se comparam com pobres abaixo da linha da pobreza, o senso de ‘‘nós’’ e ‘‘eles’’ surge para dividi-los.
Amber encontra aliadas / União entre os ‘‘outros’’?
Mesmo que existam vários empecilhos, Amber recebe apoio de pessoas como Loretta, Leslie Miller e Lisa Swenson.
Loretta é white trash como Amber e, desde o início, não põe fé na vitória da filha de sua vizinha. Ela aposta fielmente em Becky, afirmando que a riqueza e os status da família irão influenciar no resultado da competição. Loretta também bebe e passa a maior parte do filme sendo o que os ruralistas chamam de sexualmente promíscua, se oferecendo, inclusive, para a equipe de documentárias. Mesmo que seu comportamento não seja o moralmente ideal, Loretta é tão humana e bondosa quanto aos bons cidadãos da cidade. Quando a mãe de Amber sofre um acidente brutal, é Loretta quem demonstra solidariedade e também começa a ajudar Amber em sua jornada.
Já sobre Leslie Miller, pouco se sabe sobre ela, além de sua evidente falta de intelectualidade, sua posição como líder de torcida e paixão pelo namorado. Ela é o exemplo mais claro de “flanderização”, um processo pelo qual uma única característica do personagem é exagerada a ponto de dominar sua identidade. Miller se aproxima da visão rural de promiscuidade, visto que aparenta não possuir noções sobre em quais locais pode manifestar sua sexualidade e sensualidade. Apesar dos ‘‘visíveis defeitos’’, Leslie demonstrará solidariedade a Amber quando percebe uma injustiça, demonstrando um lado empático, justo e solidário.
O apoio decisivo, entretanto, vem de Lisa Swenson. Lisa também é considerada um ‘‘outro’’, pois, ao contrário de seus conterrâneos, ela é apaixonada por Nova York e não por sua cidade natal. Em vários aspectos, seus valores são mais modernos do que os de seus conterrâneos, mais alinhados com uma visão urbana. Lisa tem um irmão gay que mora em Nova York e, assim como ele, sonha em ser artista. Quando descobre que Amber está sendo injustiçada, Lisa decide apoiá-la, mesmo que isso signifique sua eliminação imediata do concurso.
Por fim, é importante mencionar a tentativa de integração do ‘‘outro’’ através de Molly Howard, filha adotiva de um casal de japoneses que se mudaram para Mount Rose. O que eu vou dizer parece irônico, mas é o ápice da satirização do filme: o casal de japoneses adota Molly unicamente para serem reconhecidos como cidadãos estadunidenses e pertencentes a comunidade Mount Rose. Como família, eles vivem da maneira mais estadunidense e rural possível, mas se reafirmam constantemente em público, como uma tentativa de reforçar seu pertencimento. Isso é um reflexo exagerado de um problema existente e persistente. A América Rural é predominante branca e isso é um fato. Embora o estereótipo de racismo e xenofobia possa parecer exagerado, o sufocamento de minorias raciais como afro-americanos, hispanicos e asiáticos fazem parte do estilo de vida branco, normalizado há séculos nas comunidades rurais. Não estou dizendo que não existam brancos anti-racistas na América Rural, apenas estou observando que muito do que conhecemos como comportamento e valores brancos vem de seu contato e de sua oposição ao ‘‘outro’’.
Concluindo.
Eu recomendo fortemente Lindas de Morrer, pois, como procurei demonstrar ao longo do texto, ele evidencia como os estereótipos sobre a América Rural, discutidos por Robert Wuthnow, estão profundamente enraizados na realidade, tanto no contexto de sua época quanto nos dias atuais. As preocupações centrais da cidade — a preservação da cultura local e o receio de mudanças — caminham lado a lado com a discriminação contra grupos marginalizados, como os white trash e imigrantes. Assim, Mount Rose representa uma cidade marcada por rígidas tradições, onde o suposto senso de comunidade entre os moradores se confunde com a manutenção de uma ordem social que exclui o ‘‘outro’’ e que sufoca qualquer possibilidade de transformação.
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*Formada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.