OS SONHOS DE PEPE

Sonhar acordado enquanto o mundo ao seu redor dorme

Por Leonardo Lima*

NOTA: 7,0

Após décadas de serviços dedicados ao seu país, sobretudo em defesa da democracia e da igualdade e justiça social, o emblemático líder de esquerda latino-americano José “Pepe” Mujica veio a público comunicar, em especial a seus compatriotas uruguaios, que está chegando ao fim da vida em decorrência de um câncer de esôfago o qual entrou em fase de metástase, atingindo outros órgãos. “O guerreiro tem direito ao seu descanso“, como bem disse em tom de despedida no início deste ano.

Sabe aquelas coincidências que ganham ares de peça pregada pela vida? Diria que o documentário Os Sonhos de Pepe, exibido nos cinemas brasileiros no apagar das luzes de 2024, certamente soma-se ao rol de eventos que se sucedem para marcar, de maneira celebratória, uma personalidade histórica cuja existência em carne e osso foi/será abruptamente interrompida. O filme do diretor Pablo Trobo, que faz um mergulho nas ideias filosóficas, políticas e sociais de Pepe Mujica para o futuro de nosso planeta, não poderia, portanto, ter sido lançado em momento mais oportuno, porquanto ele acaba potencializando a perspectiva humanista e vanguardista do pensamento crítico elaborado ao longo dos anos por seu homenageado.

Ainda que relembre aspectos importantes da trajetória de Pepe – desde seus tempos como guerrilheiro do grupo Tupamaros e preso político durante a ditadura militar até os anos em que ocupou a cadeira da presidência do Uruguai e, depois, atuou como senador –, o foco de Os Sonhos de Pepe é lançar uma mirada para o futuro em seus próximos trinta anos. Isso é feito a partir daquilo que Mujica acredita ser o caminho para um outro mundo possível, no qual os alarmantes níveis de desigualdade de renda sejam algo do passado e um equilíbrio sustentável nas relações dos seres humanos com a natureza possa ser alcançado.

Acompanhamos Pepe, então, em viagens ao redor do planeta, com passagens por países tão diferentes como Estados Unidos, Brasil e Japão, a fim de divulgar suas ideias, sempre tendo em mente a importância do diálogo face a face com o público, não importando se a plateia é formada por governantes e autoridades nacionais ou por jovens estudantes. De maneira cordial e amiga, com um sorriso discreto porém acolhedor invariavelmente estampado no rosto, ele parece reproduzir, por meio da força retórica que caracteriza o seu discurso, a mística responsável por projetar o Uruguai no concerto das nações ao longo de sua história, a despeito de ser um país pequeno territorialmente e em população absoluta. De certo modo, é como se, falando ao microfone em cada palestra ou entrevista dada, Pepe argumentasse com a mesma maestria de Obdúlio Varela ou Luís Suárez nos gramados vestindo a camisa da Celeste Olímpica.

As palavras do sábio ancião, que se mantém fiel a um estilo de vida simples, local em sua base material mas universal em sua condição humana, são amplificadas por intermédio de algumas escolhas técnico-estéticas das quais Pablo Trobo lança mão para trazer à baila os sonhos mais íntimos de Pepe Mujica. Além do charme da trilha sonora, que recorre a Villa-Lobos com seu clássico O Trenzinho do Caipira, chama a atenção, em particular, o uso de efeitos digitais que tomam a tela sem qualquer pudor ou reserva, como se evidenciassem que a beleza inadvertidamente evocadas por aquelas imagens – tornadas reais graças aos avanços tecnológicos do presente, outrora mera utopia – trata-se, na verdade, de um convite ao espectador para acreditar que os ideais de Pepe, tidos hoje como utópicos, também poderiam vir a se concretizar. Para isso, é necessário que a práxis dos indivíduos e coletividades seja reorientada no sentido de uma vivência que negue com veemência as premissas predatórias do modo de produção capitalista, as quais estão conduzindo a humanidade à autoextinção.

Os Sonhos de Pepe adquirem contornos de testamento intelectual deixado para as futuras gerações. Para além de sua defesa incondicional das ideias progressistas de esquerda, Pepe, neste documentário, mostra sua capacidade em promover o diálogo aberto e franco acerca de problemáticas que cada vez mais dizem respeito a todos. Mesmo aqueles que pensam de forma contrária a ele, haverão de reconhecer um dia o quão visionário foi Pepe, logrando êxito em abordar questões que, a curto e médio prazos, muito provavelmente serão tidas como triviais. Quanto ao filme em si, tem-se, aqui, um exemplo de obra que faz jus à sua natureza cinematográfica, pois documenta, com felicidade ímpar, a utopia necessária de alguém que ousou sonhar acordado enquanto os demais ao seu redor apenas dormem em berço esplêndido produzido à base de ganância e imprudência.

Título original: Los Sueños de Pepe – Movimiento 2052

Direção: Pablo Trobo

Ano de lançamento: 2024

País: Uruguai

Duração: 86 minutos

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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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