Por Sthefaniy Henriques*
Temas sobre famílias, propriedades, história, legado, conflitos raciais e amor são temáticas recorrentes associadas ao gótico sulista. William Faulkner, popularmente conhecido como progenitor do subgênero literário, combinou todas essas questões com aspectos específicos do Sul dos Estados Unidos. Com a popularização desse subgênero nas mãos do próprio Faulkner, o gótico sulista também encontrou um lar no cinema, através de filmes como Um Bonde Chamado Desejo (1951), O Mensageiro do Diabo (1955) e O Sol é para todos (1962). Com tantos exemplos poderosos de filmes pertencentes ao subgênero, Pecadores, novo filme de Ryan Coogler pode facilmente ser listado como um dos melhores filmes da história do subgênero.
Encarando o desafio de resumir um dia cheio de acontecimentos em modestas 2h17, Pecadores apresenta o retorno dos gêmeos Fumaça e Fuligem a Delta, Mississippi. Em 1931, os gêmeos decidem abrir um bar de blues para a comunidade negra na sua cidade natal, no mesmo dia de retorno. Assim, eles compram uma serraria de um homem branco, recrutam músicos e funcionários negros e fazem a propaganda do local, mas, horas depois, além dos imprevistos administrativos em decorrência da abertura do bar, os gêmeos são obrigados a encarar uma horda sobrenatural.
Essa história é ambientada em Mississippi, como já dito anteriormente. Nesse contexto, convém relembrar que em 1931 o sul ainda era segregado, os afro-americanos viviam em agricultura de subsistência e a presença da Klu Klux Klan intimidava a vida, ascensão e comportamento social que não eram, no imaginário branco racista, compativeis com negros do Sul. O Mississippi é definitivamente lembrado como um dos locais mais brutais para se viver durante as décadas de segregação, afinal, é o estado onde linchamentos brutais contra pessoas negras aconteceram.
Nesse cenário, o bar de Fumaça e Fuligem soa como uma verdadeira proposta de liberdade momementena, os afro-americanos, cansados da colheita e de uma vida sem possibilidades de ascensão social, podem ouvir suas músicas, apreciar sua própria cultura e evitar inúmeros dos ‘‘pisar’’ em ovos que enfrentam ao conviver com a comunidade branca. No entanto, apesar dessa proposta do bar, convém lembrar que Pecadores ainda é um gótico sulista e o gótico sulista é marcado pela sua insanidade, decadência, desespero e pelas pressões históricas e sociais que atravessam tanto o passado dos afro-americanos quanto o dos aristocratas brancos, perpetuando as hostilidades raciais.
É evidente que Ryan Coogler, diretor do filme, busca realizar uma produção que respira a história afro-americana, desde seu passado ainda no continente africano – com referências aos griôs e ao candomblé – até um futuro que também representa o presente, por meio da valorização da cultura negra no rap e no hip hop. Essas dimensões se entrelaçam em uma narrativa que, por vezes, oferece vislumbres desse pertencimento — como epifanias identitárias —, mas que se dedica, sobretudo, a explorar profundamente a essência do gótico sulista.
Ao buscar essa aproximação, é notável como Coogler consegue desenvolver um filme de originalidade singular. Pecadores não abdica dos elementos tradicionais do subgênero – como o suspense, o horror, o humor ácido e o drama –, mas os incorpora e os entrelaça com características de musical, filmes de gângster e de melodramáticos. Nesse processo, Coogler promove uma atualização do gênero, conferindo ao gótico sulista uma renovação estética – mas não narrativa – que se distancia das obras anteriormente mencionadas. Afinal, Pecadores é, apesar de tudo, uma obra marcada por um erotismo latente, uma energia explosiva – vista através do uso explícito da violência, por exemplo – e pela coragem de insistir em uma narrativa que, embora cheia, ainda tem muito espaço para o terror fantástico, para a presença de vampiros.
Por fim, é importante destacar a relevância de um diretor negro que constrói a narrativa a partir de uma perspectiva negra. Não se trata de uma defesa da ideia de propriedade da fala, mas de uma observação crítica: o gótico sulista é, historicamente, um gênero majoritariamente branco, produzido por brancos que, frequentemente, criam ou adaptam figuras negras a partir de uma ótica branca. Em Pecadores, observa-se uma consciência política e um senso de pertencimento que, ao se incorporarem à estética do gótico sulista, produzem metáforas e camadas de significado que já operam no primeiro nível de leitura – o mais objetivo, o literal –, mas que se expandem à medida que a subjetividade é utilizada. Embora essa leitura possa parecer excessivamente interpretativa, o que eu tento afirmar é que a presença de vampiros, do blues, do folk e da identidade de Mary (Hailee Steinfeld) – dialoga diretamente com questões como a apropriação cultural, o apagamento da contribuição negra para a arte e a resistência diante desses ataques.
Com isso, Pecadores é um filme que tem muito o que dizer e brilhantemente utiliza-se do gótico sulista – um gênero historicamente cheio de coisas a dizer – para fixar sua mensagem e, mais do que isso, exibi-la de uma maneira brilhante.
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*Formada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.










