Plano 75: até quando seremos úteis e dignos de viver?

Por Leonardo Lima*

Com seus cidadãos vivendo até os 83 anos de idade, em média, o Japão tornou-se uma das nações com a maior expectativa de vida em todo o planeta. De cultura milenar, o país é conhecido por garantir aos anciãos um lugar simbólico de destaque dentro de sua estrutura societária – ainda que afastados das atividades economicamente produtivas, costumam ser tidos como uma fonte imprescindível de sabedoria e conhecimento, merecedores, portanto, de respeito e prestígio quase devocionais por parte daqueles que ainda estão nos estágios iniciais da jornada da vida.

Diante do processo de envelhecimento da população japonesa, percebe-se uma silenciosa, porém cada vez mais perceptível mudança na maneira como os indivíduos que alcançam a terceira idade são vistos pelo restante da sociedade. Se antes predominava uma positividade com relação a eles, por conta do que poderiam ainda contribuir em termos de transmissão de concepções eivadas de equilíbrio entre a razão e a emoção, agora essas pessoas mais velhas têm sido encaradas com um olhar de preocupação e desespero, muito por causa da imagem que lhes atribui negativamente o status de estorvos para jovens e adultos, que se veem obrigados, moral e legalmente, a sustentá-los quanto às necessidades mais básicas de ordem material e afetiva. 

Todo esse contexto de vertiginosas e deprimentes mudanças socioculturais acima explorado norteia a premissa de Plano 75, longa-metragem lançado há dois anos mas que apenas agora chega às salas de cinema brasileiras com distribuição da Sato Company. Indicado pelo Japão para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, esse distópico filme se passa num futuro breve, no qual é adotada uma política pública de Estado – justamente o tal do Plano 75, que dá titulo – cujo objetivo é ofertar a idosos com 75 anos ou mais a possibilidade de recorrer à eutanásia como forma de abreviar a vida, e, assim, fazer com não se tornem obstáculos para o desenvolvimento das gerações mais novas e, por conseguinte, do próprio país.

A diretora Chie Hayakama sustenta a narrativa de seu filme expondo como esse programa de morte voluntária assistida impacta o meio social, utilizando-se, para tal, de três personagens cujas trajetórias concentram os desdobramentos dramáticos: uma trabalhadora idosa que vive sozinha, um vendedor de Plano 75 e uma imigrante filipina cuidadora de idosos. Ainda que suas histórias não estejam diretamente interligadas, cada um deles compõe um miniquadro que carrega consigo aspectos de ordem moral e ética que levam o público à reflexão sem levantar de maneira panfletária a bandeira do antietarismo. Tudo é feito a partir de planos que falam por si de modo objetivo e transparente, sem recorrer ao didatismo simbólico nem ao maneirismo artificial.

Constitui um mérito narrativo o fato de o roteiro situar o espectador acerca das origens do Plano 75 nos minutos iniciais do filme, evidenciando, desse modo, que o futuro distópico de ambientação da obra não é tão distinto dos nossos dias atuais, ainda mais se considerarmos o recrudescimento em curso de um ideário político notadamente neofascista. É interessante citar, também, os esforços da diretora em refutar a perspectiva utilitarista subjacente à narrativa a partir de planos singelos que expressam o quanto os idosos ainda têm a contribuir e viver socialmente, bastando que hajam esforços adaptativos em consonância com suas especificidades corpóreo-psíquicas. 

Com cadência e sutileza na encenação e escolhas de decupagem que beiram o minimalismo xintoísta, Chie Hayakama entrega um dos daqueles filmes que, a despeito de não trazerem cenas memoráveis – porquanto não apelarem para um artificialismo emotivo -, causam desconforto perturbador durante dias para quem o assiste, sobretudo porque, de certa forma, talvez ele antecipe o nosso próprio futuro. Um futuro no qual pessoas como eu ou você, hoje na faixa dos 20 aos 40 anos, serão possivelmente vistas como indivíduos descartáveis, cuja existência não fará falta se for abreviada.

Agradecimentos a Sinny Comunicação e a Sato Company pelo convite para participar da cabine on-line do filme.

Quer receber conteúdo do TemQueVer no Whatsapp? (Clique aqui)

Quer escrever para o TemQueVer? Entre em contato conosco através do chat de nossas redes sociais (Instagram e Facebook) ou pelo email temquevercinema@gmail.com

*Recifense, 38 anos, sociólogo, aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

 

Comente