Recife Frio: Ironia e Crítica Social

Por Leonardo Lima*

Décima quarta obra da filmografia de Kleber Mendonça Filho, Recife frio estreou no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2009, ocasião em que levou o prêmio de Melhor Roteiro daquela edição, bem como o simbólico prêmio de Melhor Momento do Festival dado pelo jornal Correio Brasiliense. Outras premiações conferidas ao curta foram no Cine PE, no Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro, no Grande Prêmio Canal Brasil de Curtas-metragens, entre outros. Ao todo, o filme recebeu mais de 50 prêmios no Brasil e no exterior, fazendo dele o curta-metragem brasileiro mais premiado desde Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado.

Visão bastante pessoal do diretor acerca de sua amada terra natal, Recife frio é, segundo palavras do próprio Kleber Mendonça, “um lamento de amor pelo Recife”.

Mas, para além disso, o que o curta acaba revelando, em particular, no que diz respeito à filmografia do cineasta pernambucano – sobretudo se levados em consideração dois aspectos-chave: a ironia e a crítica social que o permeiam do início ao fim? E mais: o que faz desse filme uma pequena obra-prima capaz de ter se transformado numa referência cultural da Veneza Brasileira?

Para responder a ambas as perguntas, antes de tudo é preciso entender a estrutura fílmica responsável por sustentar narrativamente Recife frio, que, grosso modo, poderia ser classificado como uma ficção científica distópica sob um arranjo (pseudo)documental.

Temos aqui, de modo mais preciso, aquilo que se convencionou chamar de mockumentary (ou mocumentário, numa tradução para o português), que nada mais é do que um formato audiovisual o qual simula as características gerais dos documentários, evidenciando, entretanto, a natureza ficcional de seu conteúdo. O nome desse subgênero cinematográfico vem da junção dos termos mock (falso ou imitação) e documentary (documentário), e costuma designar, majoritariamente, os filmes e séries cuja proposta de mise-en-scène resulta da sátira ou da paródia ali encenada.

É importante diferenciar o mocumentário do pseudo-documentário. Enquanto este último simula uma realidade com uma abordagem pretensamente mais sóbria, realista e autêntica – a exemplo dos filmes Holocausto canibal (1980), A bruxa de Blair (1999) e REC (2007), que, em síntese, apresentam eventos, personagens e/ou situações como se fossem reais, sem explicitar que são ficcionais.

Por sua vez, o mocumentário, ainda que se desenvolva a partir de uma estrutura que apela para elementos próprios ao formato documental, possui particularidades no que diz respeito à manipulação da ironia no âmbito do discurso audiovisual. Para o norte-americano Bill Nichols (2012 apud Suppia, 2013), autor de Introdução ao documentário, um mocumentário acaba por satirizar nossa ideia pré-concebida de filme documentário. Para ele, os mocumentários

adotam as convenções de documentário, mas são encenados, roteirizados e representados para criar a aparência de um documentário genuíno, e deixam pistas de que não são. Parte do prazer que proporcionam está na maneira como compartilham a piada com o público bem informado: podemos apreciar o filme como paródia e desenvolver uma percepção nova de convenções que antes passavam despercebidas (Nichols, 2016, p. 39 apud Vogel, 2022, p. 7).

Nesse caso, além de Recife frio, poderiam ser citados como exemplos de mocumentários Borat (2006), Distrito 9 (2009) e O que fazemos nas sombras (2014), dentre aquelas obras contemporâneas mais conhecidas do público.

Voltemos ao caso de Recife frio, ao mesmo tempo um caso singular e complexo. Nele, Kleber Mendonça Filho se utiliza da linguagem cinematográfica para construir uma narrativa capaz de desestabilizar a percepção do público frente aos acontecimentos nele apresentados. No filme, uma estranha mudança climática faz com que o Recife, uma cidade tipicamente tropical do litoral nordestino, se torne fria repentinamente. A construção discursiva do curta se dá através do engenhoso uso do telejornalismo investigativo mediado pelo olhar do estrangeiro – no caso, um argentino – para aquela cidade repentinamente assolada pelo frio. Destaque à parte para o trabalho de montagem, fundamental no processo de (res)significação daquilo que é visto e ouvido pelo espectador: imagens de arquivo, depoimentos de moradores de diferentes classes sociais, planos e cenas filmados de modo a exibir um Recife visualmente sempre nublado e/ou chuvoso, bem como caracterizado por um estado de melancolia contínua, sentida por cada indivíduo, mas cujos efeitos são distintos, mais ou menos perversos a depender do lugar social de cada pessoa.

Algo também marcante em Recife frio é a presença de temas que vão ser postos de maneira mais explícita em O som ao redor e Aquarius, em especial a especulação imobiliária e o modo como as relações interpessoais se degradam a passos largos no espaço urbano do Recife. Interessante notar o tom oscilante como isso é apresentado no curta, ora recorrendo-se ao cômico e à ironia, ora expondo a crítica com uma sutileza de argumento, apoiando-se em imagens que falam por si só e são universais em seu entendimento.

Segundo Nunes (2016), Kleber Mendonça Filho recorre à estética e à técnica que consagraram o documentário enquanto formato cinematográfico – a exemplo da narração em voz over com tom didático e elucidativo (isto é, a “voz de Deus”, de um narrador onisciente e onipresente que possui autoridade e legitimidade sobre aquilo que está sendo contado ao espectador; afinal de contas, ele é jornalista e estrangeiro).

Todavia, na dimensão narrativa, se dá o deslocamento ético frente à tradição histórica do documentário de buscar transmitir verdades, uma vez que, em Recife frio, o que está posto na mesa é um relato assumidamente falso. De tão inverossímil e deslocado da realidade recifense, o material “jornalístico” do filme acaba criando efeitos cômicos por meio da ironia, e, simultaneamente, efeitos de crítica àquilo que se impõe aos indivíduos e grupos sociais da cidade do Recife no plano extradiegético (isto é, o mundo real, fora do filme). Isso fica evidenciado, sobretudo, no trecho em que são mostradas as consequências da mudança climática na convivência diária dos membros de uma família de classe média alta com sua trabalhadora doméstica em um apartamento na orla de Boa Viagem. Em suma:

…o frio serve como mcguffin, um gancho, para [Kleber Mendonça] Filho tratar dos assuntos que lhe interessam: a desumanização da cidade que se verifica desde antes do evento meteorológico fruto da especulação imobiliária; o abismo crescente entre ricos e pobres; o turismo predatório que beneficia somente uma pequena classe privilegiada; a impessoalidade do shopping centers. As falsas asserções dialogam com a situação socioeconômica de Recife, revelando o quanto de inverossimilhança há nas relações dessa cidade. Um falso documentário que levanta questões muito presentes em Recife.

É impossível assistir a Recife frio e ficar indiferente com relação à experiência, mesmo para quem não mora no Recife ou sequer veio à capital pernambucana. Isso ocorre pela perspicácia e habilidade de Kleber Mendonça Filho ao construir um universo fílmico provocativo quanto aos sentidos de sua narrativa, universo esse situado nas fronteiras entrelaçadas da realidade com a ficção, como meio de discutir os problemas atuais (e provavelmente futuros) de sua amada terra natal. Ainda que Recife viesse a se tornar uma cidade fria do ponto de vista climático, nada é mais triste e insuportável do que a frieza que há tempos tomou conta das relações humanas nessa cidade.

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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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