RETRATOS FANTASMAS E A MEMÓRIA COMO FERRAMENTA DE RESISTÊNCIA

Por Pablo Rodrigues*

“Filmes de ficção são os melhores documentários”.

Sempre me encanto com o potencial de metamorfose da arte, ou seja, quando esta ultrapassa seus limites estéticos e se torna algo mais do que uma expressão artística. Nesse sentido, o cinema, devido à sua capacidade única de manipulação da imagem do real, consegue proporcionar estas transformações mais do que qualquer outra forma de arte. É isso o que vemos em RETRATOS FANTASMAS (2023), novo longa-metragem documental do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho.

Utilizando imagens de arquivo reunidas ao longo de sete anos e de uma rica pesquisa histórica, o longa explora a história do centro da cidade do Recife a partir das antigas salas de cinema que lá existiam e influenciavam na dinâmica daquele lugar, bem como no comportamento das pessoas que o frequentavam. No entanto, Kleber não faz de seu filme um simples registro histórico objetivo, ao contrário, ele se coloca em cena, tanto como narrador quanto como protagonista da narrativa, dando à sua obra um caráter pessoal, intimista, criando uma verdadeira declaração de amor à sua cidade natal e ao cinema.

Ao adotar esta abordagem narrativa, o diretor consegue dar à sua obra diversas camadas, além de subverter o conceito tradicional de documentário, criando mais que uma obra cinematográfica, criando memória. Não à toa o filme mescla registros documentais com elementos ficcionais em alguns momentos, emulando o que acontece com nossas memórias, as quais nunca são totalmente fidedignas com os fatos históricos, já que são influenciadas por nossa subjetividade.

É interessante perceber como a memória é um tema importante e recorrente na filmografia do diretor. No entanto, tal temática não é trazida apenas como um elemento psicológico, mas sim como uma ferramenta de resistência de seus/as personagens frente ao meio social em que estão inseridos/as. Em O SOM AO REDOR (2012), é a memória ainda presente de um passado colonial e coronelista que norteia a dinâmica das relações sociais do bairro onde a trama se passa. Já em AQUARIUS (2016), são as lembranças das vivências da protagonista em seu apartamento que dão sentido à sua relação com o lugar e lhe motivam a resistir contra a especulação imobiliária. Da mesma forma em BACURAU (2019), onde o histórico de violências seguidas cometidas contra a comunidade é o que ensinou seus/as habitantes a se unirem cada vez mais e resistirem às violências externas. Por sua vez, em RETRATOS FANTASMAS, são as memórias do próprio Kleber com relação à cidade, à sua casa, ao centro do Recife e seus cinemas de bairro que constituem a base da reflexão crítica do filme, bem como de sua resistência ao avanço voraz do chamado “progresso capitalista”.

Nesse sentido, embora o longa traga uma visão muito pessoal acerca de seu conteúdo temático, não deixa também de destacar seu caráter político, o que é reforçado pela estrutura narrativa do roteiro, o qual divide os seus atos em três capítulos bem delimitados, compondo um panorama histórico que vai do particular, do individual, até a totalidade da dinâmica social. Assim, o diretor demonstra que nossa subjetividade não está descolada do meio social em que vivemos, ao contrário, antes é fruto deste.

No primeiro capítulo, temos um relato mais intimista sobre a história do próprio Kleber, com destaque para sua relação com a mãe e com seu apartamento, o qual foi cenário de muitos de seus filmes. No segundo, o foco se amplia e passa a ser o centro do Recife, seus cinemas de bairro e a relação do diretor com estes. Por fim, no terceiro capítulo, o longa amplia ainda mais sua análise para refletir sobre os aspectos macro das mudanças sociais contemporâneas relacionadas ao cenário apresentado, ressaltando os impactos problemáticos destas para a vida urbana e, principalmente, para o cinema e as artes em geral.

No entanto, esta reflexão não se fundamenta num saudosismo barato. Ao contrário, Kleber nos lembra que os espaços urbanos não são apenas estruturas de concreto, são espaços vivos. Por isso, é triste constatar, através do filme, como o avanço do desenvolvimento capitalista nos centros urbanos contribuiu para a extinção de espaços culturais como os cinemas de bairro, os quais, acima de tudo, eram lugares que proporcionavam vivências de coletividade, algo cada vez mais raro nos dias atuais.  E com as salas de cinema existindo atualmente quase que exclusivamente nos shoppings centers, o acesso à esta experiência tornou–se cada vez mais restrita e elitista. O longa ainda ressalta que este “progresso” social transforma não apenas os espaços coletivos de arte, mas também as pessoas, a classe trabalhadora que os sustentavam, em fantasmas urbanos, invisibilizados pelo esquecimento social.

Diante disso, resta ao diretor, assim como os/as personagens de suas obras, fazer uso de suas memórias e das da cidade e seus cinemas de bairro, para transformar seu filme em uma memória coletiva de resistência política. Nesse sentido, RETRATOS FANTASMAS mostra-se uma exaltação do potencial transformador e político da sétima arte. Uma carta de amor ao cinema e à vida pulsante dos espaços urbanos. É a arte se tornando algo mais, se tornando memória viva, para resistir.

*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

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