Por Sthefaniy Henriques*
O Egito provavelmente foi um dos primeiros países a receber a sétima arte, afinal, a primeira exibição de um filme ocorreu ainda em 1895 em um Café localizado em Alexandria, apenas um mês depois da primeira exibição dos irmãos Lumiere em Paris. Após esse marco inicial, o início do século XX começa com numerosas salas de cinemas espalhadas por Alexandria e Cairo, abrigando também um interesse crescente da elite local em produzir filmes. O desenvolvimento da indústria cinematográfica, por sua vez, teve vários desencadeamentos e momentos.
O que começa como uma arte realizada por estrangeiros, após 1919, com a Revolução, ganha um novo impulso a partir da criação de industrias e busca pela valorização da cultura nacional. Nesse momento, é criado a Egyptians Acting and Cinema Company, responsável por levar estudantes egípcios para estudar cinema em outros países e também a Isis Film, fundada em 1926 por Aziza Amir, considerada a primeira diretora da história do Egito. Substituindo esse período de primeiros passos do cinema, inicia-se em 1930 os anos considerados de ‘‘estúdio’’, momento no qual é criado um número significativo de grandes estúdios, dentre eles o Mirs, esse que era muito similar ao de Hollywood, pela essência de ser uma ‘‘fábrica de sonhos’’, produzir em grandes quantidades filmes que iriam satisfazer a população urbana do Egito. Sobre esse aspecto, Jane Gaffney, responsável por publicar o artigo The Egyptian Cinema: Industry and Art in a Changing Society, defende que esse forte traço dos filmes de grandes estúdios, principalmente do Mirs, ajudou a montar uma fórmula de sucesso, que incluía musicais, comédias e melodramas no qual eram apresentadas histórias de amor que enfrentavam, sobretudo, barreiras sociais.
Por mais o Egito produzisse em massa um cinema escapista, o Estúdio Misr contribuiu para a escola do neorrealismo social, essa que veríamos ser tornar uma tendencia apenas na década de 1950. O principal nome do gênero foi Salah Abu-Seif, mas Youssef Chahine também foi uma figura forte, um grande contribuidor para o desenvolvimento. Em 1958, ele lançava Estação Central de Cairo, filme que, segundo José Farim em matéria para a Mubi, foi o mais conhecido e celebrado da história do cinema árabe por mais de meio século.
Chahine, entretanto, foi um cineasta versátil e parte de sua versatilidade está inserida em Estação Central do Cairo, considerado seu filme mais polêmico. Mesmo neorrealista, sua história principal lembrará filmes hitchcockianos, afinal, quem nos conduz aos acontecimentos da Estação é Qinawi (interpretado pelo próprio Chahine), um vendedor de jornais que desenvolve uma paixão obsessiva por Hanuma (Hind Rustum), uma vendedora informal de bebidas geladas que trabalha nas linhas. Qinawi, entre tentar trabalhar e cortejar Hannuma, a partir de sua movimentação pela estação, nos leva a diversas histórias secundárias com tom político, locações reais, atores não profissionais e uma abordagem quase semi-documental, traços característicos do neorrealismo.
A vida urbana no Cairo pós Revolução Nasserista
As grandes transformações estruturas e demográficas após a tomada de poder e derrubada da monarquia, transformaram a vida da sociedade egípcia. A capital do Egito, especificamente, cresceu de um modo desigual, pois ao mesmo tempo em que o leste do Cairo se desenvolvia através da industrialização, o Oeste continuava como uma área rural. Esse aspecto, inicialmente, é importante para entendermos Qinawi, que deixa a região rural para buscar fortuna e felicidade no grande centro. A produção, entretanto, começa com a narração de Madbouli, um pequeno comerciante que ajuda Qinawi ao oferecer a ele um emprego como vendedor de jornais e indicar um lugar moribundo (sem teto e com paredes de telha eternit e madeira) perto dos trilhos de trem no qual Qinawi, se quisesse, poderia chamar de lar. O filme, desse modo, já inicia nos indicando algo: Qinawi havia falhada, estava vivendo na miséria e possuía um trabalho com salário que não sustentava suas necessidades básicas.
Sua falha e frustração, entretanto, por mais evidenciada que possa ser – afinal, ele é o protagonista – não o tornava especial e sim apenas mais um na estação. A apatia é possível porque Chahine, ao montar sua mise-em-scene, cria em suas locações uma atmosfera da vida moderna, onde, visualmente, se vê uma discrepância entre as condições financeiras dos mais diversos passageiros e trabalhadores operando na estação. Tal trabalho, aliás, acaba remetendo a ideia de Georg Simmel sobre a individualidade e indiferença das pessoas da cidade, essas que não vão se importar para os problemas de terceiros, pois estarão envoltos em seu próprio mundo, estão ali por si mesmas.
O trabalho de Chahine, dessa forma, é sucessível quando ele faz de Qinawi um guia para encontrarmos outras pessoas que compartilham de condições sociais similares. Nas linhas dos trens, podemos ver crianças executando diversas tarefas em troca de moedas, mulheres vendendo bebidas para os passageiros entre os trilhos e homens arriscando sua integridade física no transporte de cargas pesadas. Enquanto, apenas a presença infantil realizando algo inadequado para a idade pode incomodar, Chahine trabalha um pouco mais com a questão da exploração da mão de obra adulta. Em relação as mulheres, há uma forte indisciplina, pois, a ilegalidade e o método de venda de seus serviços causam um aborrecimento em vendedores ambulantes com comércio legalizado dentro da estação, estes que também estão tentando ganhar a sua vida e respondem no final do dia aos respectivos chefes. A ação feminina, entretanto, não é julgada, Chahine constrói as personagens secundarias e Hanuma como mulheres que buscam sobreviver daquela maneira, pois sabem outras oportunidades estão fora de alcance e, portanto, devem prosseguir ali com o trabalho duro, mesmo que isso venha a prejudicar outros funcionários.
Já com os carregadores, há um tratamento um tanto diferente por Chahine, afinal, mais do que os problemas apresentados, também é proposto, desde o início, uma solução tão explicita quanto a exploração. Com menos de 10 minutos de filme e um dos carregadores machucados devido a queda de um cofre em sua mão, Abu Siri (Farid Shawqi) se demonstra inconformado por mais um acidente de trabalho e propõe uma formação sindical, afirmando que ‘‘um sindicato garantirá uma vida decente para todos’’ e mencionando como argumento em seu discurso inflamado outros incidentes ocorridos com colegas de trabalho. ‘‘Na semana passada, Rizq quebrou a perna e agora ele está falido. Shaheen está doente há meses e ninguém se importa. E como Abbas pode trabalhar agora? Apenas um sindicato nos protegerá e garantirá nossos empregos’’. As 17h daquele mesmo dia, os trabalhadores se reuniriam para votar sobre um sindicato.
A frustração com a vida moderna leva a ações extremas
O suspense psicossexual do filme vem de escolhas bastante interessantes de Chahine quanto a exploração da mente perversa de Qinawi. Para além de montar uma ambientação onde a casa de Qinawi possui várias fotos de mulheres seminuas nas paredes e que o próprio também as portas dentro de seu produto de venda, o diretor adota uma câmera subjetiva, simulando o olhar de seu protagonista, intensificando algo predatório na maneira no qual ele olha para o corpo feminino.
O filme, entretanto, trabalha a paixão obsessiva de Qinawi e seus atos extremos contra Hanuma como uma consequência da frustação do mesmo ao perceber que nenhum dos seus objetivos ao ir para a cidade poderiam ser concluídos, nem mesmo o de ter uma companheira. A questão da falta de afeto, na verdade, não se resume a Qinawi viver em condições de rua, mas também portar uma deficiência em uma de suas pernas, acréscimo que poderia ser, inclusive, a principal causa para o protagonista não ter conseguido chances melhores na cidade (algo que o filme não aborda, mas há grandes possibilidades). De todo modo, a vida amorosa é o fator decisivo para o desencadeamento de ações transtornadas de Qinawi, que com a negação de seu pedido de casamento a Hanuma – que se casaria no mesmo dia com o líder sindical – faz de seu objetivo de vida matá-la, contaminado pela raiva e desesperança.
Anterior ao desencadeamento de tal insanidade, Qinawi tem um diálogo bastante revelador com Hanuma. Na conversa, ele demonstra o interesse de voltar para o interior, para seu vilarejo, caso ela aceitasse-se casar com ele. Essa passagem é importante para entender que o vendedor, consciente de que nada deu certo, queria retornar para um ambiente seguro, mas não poderia fazê-lo de mãos vazias e, em Hanuma, estava sua última esperança, sua passagem de regressar como um homem que obteve êxito. Nesse ponto, Chahine apresenta algo muito próximo de uma linguagem universal quanto ao orgulho e a vergonha, principalmente para as pessoas que fizeram parte de um fluxo migratório, estas que toleram a miséria em um lugar distante de seu local originário para evitar a vergonha (que, em alguns locais, recaria sob sua família).
Qinawi me remete, em partes, a Patrick Bateman (Chrstian Bale) em Psicopata Americano (2000), mas não por ser narcisista e materialista, mas por se tornar um retrato da sociedade que o criou.
Um clássico essencial e acessível
O filme, por ser diferente de tudo que Chahine fez anteriormente, não foi bem recebido pelo público, pois como assinalou o pesquisador Joel Gordon, houve aqueles que defenderam que a produção prestou um grande desserviço para a imagem no país no exterior, além, é claro, do próprio final drástico da produção. Entretanto, na década de 1980 a obra foi resgatada como um grande clássico do cinema egípcio e chegou a ser exibida em Cannes quando o diretor foi homenageado. Atualmente, a Estação Central do Cairo é um grande clássico do cinema, mas, infelizmente, pouco comentado.
Imerso em críticas sociais, A Estação Central do Cairo está disponível na Netflix e gratuitamente no Youtube.
*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.