Corpos, corpes e corpas em movimento no empolgante filme queer de Vitã e Juru
Por Leonardo Lima*
NOTA: 8,0
A história recente do cinema brasileiro tem sido marcada por um boom sem precedentes de temáticas, estéticas e narrativas oriundas de polos de produção audiovisual diversos e feitas por indivíduos e grupos que expressam a multiplicidade identitária dos lugares de fala na contemporaneidade. Com direção de Juru e Vitã, cineastas LGBTQIAPN+ emergentes do Rio de Janeiro, Salão de Baile: This is Ballroom é um dos filmes de 2024 que melhor denotam essa tendência.
Vencedor do Coelho de Ouro no 32° Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade, o longa é uma ode celebrativa à polifônica cena ballroom do Rio de Janeiro, formada por corpos, corpes e corpas tão distintos entre si, mas cujo ritmo dançante na pista expõe em primeiro plano, de maneira expressionista, a fusão à brasileira das culturas negra e queer. Nesse sentido, o documentário-performance de Vitã e Juru consegue construir para si uma dimensão aurética própria a partir da qual se dá a tessitura de sua narrativa, afastando, desta forma, qualquer suspeita prévia de que seja uma mimese terceiro-mundista improvisada de Paris is Burning, obra icônica da cineasta Jennie Livingston, lançada em 1990.
Observa-se, por um lado, uma reverência, até mesmo na estruturação da mise-en-scène, àquele filme, que escancarou a singularidade cultural da cena ball de New York nos anos 1980; por outro lado, Salão de Baile consegue o mesmo efeito sem obliterar as particularidades que perfazem, em terras brasileiras, a forma e o conteúdo dessa práxis social de origem norte-americana, fruto de resistência outsider por excelência.
Um diferencial do longa brasileiro reside em sua montagem, muito mais propensa a concatenar espiritualmente o dinamismo do fluxo imagético na sucessão de planos à corporeidade de seus personagens reais enquanto performam no baile especialmente criado para a gravação do documentário. É perceptível uma maior fragmentação do plano em prol da promoção de um movimento genuinamente dialético envolvendo observados e observadores, performers das houses e plateia – neste último caso, tanto faz se o referente é o público in loco ou se a audiência do filme. Em decorrência, o significado da imagem emerge a partir do ritmo inquieto assumido pela narrativa, a qual, não raro, estabelece continuidades diretas entre a ballroom e o mundo exterior das entrevistadas, como se um fosse a extensão do outro, em certa medida.
O tom de melancolia intermitente em Paris is Burning aqui acaba sendo mais difuso, ainda que não haja uma tentativa de relevar ou subestimar os obstáculos e o preconceito vividos por gays, lésbicas, trans, travestis etc. em seu cotidiano de exclusão social. Chama a atenção, ainda, a sensação de o documentário brasileiro soar menos “performático” nos momentos em que a câmera se volta para fora da ball, algo que ajuda a nos aproximarmos de suas protagonistas de maneira mais íntima e empática. As entrevistas possuem um aspecto comportamental mais natural, menos posudo, trazendo espontaneidade em cada depoimento.
Nessa hermenêutica da imagem, até mesmo as houses brasileiras parecem despidas do glamour evocado pelas mothers de suas congêneres estadunidenses, reforçando esses espaços como locais de acolhimento e resistência coletiva, antes de qualquer coisa. Outro aspecto a ser ressaltado é a perspectiva mais realista acerca das relações no âmbito da ballroom, exposta como um ambiente não apenas de cooperação, mas também de competição. Isso é flagrante numa cena em específico, na qual o baile é interrompido por conta do desentendimento entre duas participantes – demonstrando sensibilidade crítica e respeito quanto ao material cinematográfico em suas mãos, Vitã e Juru não param de gravar o ocorrido, o qual expõe, de modo cru, as fraturas e dissonâncias que também permeiam o movimento LGBTQIAPN+.
Salão de Baile: This is Ballroom possui qualidades inegáveis que nos permite destacá-lo como um dos filmes mais potentes do cinema nacional neste ano. Sua consistência resulta de uma combinação ímpar entre a beleza de seus registros da energia cinética de corpos, corpes e corpas em movimento e uma narrativa fluida capaz de nos fazer imergir a fundo em seu colorido e eclético universo. Ainda que não se configure como uma obra-prima, o documentário queer dirigido por Vitã e Juru há de se firmar como referência obrigatória para quem desejar dar prosseguimento ao baile, trazendo às telas pessoas cuja existência até há pouco era deliberadamente ignorada ou apagada da história.
Título original: Salão de Baile: This is Ballroom
Direção: Vitã e Juru
Ano de lançamento: 2024
País: Brasil
Duração: 94 minutos
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*Recifense, 38 anos, sociólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!