O cinema a serviço da vida em toda a sua diversidade
Por Leonardo Lima*
Situado no litoral norte gaúcho, Imbé abriga um pequeno córrego que percorre perpendicular e mansamente a delgada faixa de terra do município, tangenciando a alameda que direciona seus habitantes na direção do mar. Esse poderia ser apenas mais um córrego qualquer do vasto território brasileiro; porém, no curta documental Um Córrego Cheio de Vida, dos cineastas estreantes Álvaro Nicotti e Ana Caroline Acosta, aquele local é transformado num grande palco de celebração da vida em toda a sua diversidade.
Definido por seus realizadores como um curta-metragem de abordagem poético ambiental, o documentário é uma introdução à sustentabilidade como premissa fundamental de um projeto alternativo de desenvolvimento humano no qual seres humanos e natureza convivem harmonicamente um com o outro, em respeito mútuo e numa relação de trocas simbólicas benéficas para ambas as partes. A simplicidade da narrativa, acessível aos mais diversos públicos e que escapa à complexidade metafórica de outras propostas cinematográficas tematicamente similares, certamente se constitui como um dos trunfos da produção para conquistar corações e mentes em prol de sua causa.
Dos aspectos verbais aos visuais, tudo em Um Córrego Cheio de Vida é muito direto, transparente, de fácil assimilação – por vezes, imageticamente pleonástico, é verdade, quando os depoimentos dos entrevistados ou o narrador e sua voz over sobrepõe-se àquilo que se vê. Embora sintomática de uma mise-en-scène não desenvolvida em todo o seu potencial, a redundância dessa tessitura entre imagem e discurso mostra-se como um elemento que reforça a singularidade daquele córrego, justificando, assim, a necessidade de sua preservação a todo custo, contando com o apoio da população de Imbé.
A despeito de o propósito último do filme ficar bem evidente para quem o assiste, há de se ressaltar um vácuo narrativo no que tange à contextualização dos fatores sociais e políticos subjacentes à luta em prol do córrego em seu estado mais natural, em oposição à artificialidade imposta pelo concreto. Ainda que muito se fale do quão nefasto é o projeto que visa transformar aquela paisagem, adequando-a um modelo de desenvolvimento dito civilizador, aderente aos valores da modernidade e do progresso, falta ao curta expor justamente os meandros de tal projeto urbanístico; em outras palavras, perguntas como “Quem?”, “Quando?” e “Por quê? acabam ficando sem respostas.

Ressalte-se, de maneira devida, que o valor intrínseco a Um Córrego Cheio de Vida, enquanto produção cinematográfica, deve ser analisado para além de sua temática louvável. A pouca experiência da dupla de cineastas não foi impeditiva para a realização de um documentário fecundo quanto às questões técnicas, em especial a decupagem das cenas – chama a atenção, por exemplo, o uso eficiente de drones na captação de imagens, bem como a diversidade de ângulos e planos, que inclui até mesmo um incomum contra-zenital do corredor arbóreo que forra o córrego tal como uma manta.
Dito tudo isso, ao fim deve-se confessar a expectativa quanto ao que Álvaro Nicotti e Ana Caroline Acosta poderão nos propiciar no futuro. Fica a torcida para que seus próximos trabalhos mantenham essa pegada militante, de olhar responsável para a comunidade e o bem-estar humano, sem perder do horizonte o cuidado com a forma, a maneira como um determinado tema é tratado em termos audiovisuais. Ao apostar num documentário poético ambiental, ambos os realizadores certamente sabiam dos riscos de uma empreitada dessa ordem, o qual poderia facilmente ter descambado para uma falácia fílmica de tons pretensiosos. Não é o caso de Um Córrego Cheio de Vida, obra que, apesar de sua ambição assumidamente reduzida, traz consigo a verdade dos filmes genuinamente honestos e universais em seu alcance, capazes de angariar a atenção do público para a história que busca contar, seja ela documental ou ficcional.

Título original: Um Córrego Cheio de Vida
Direção: Álvaro Nicotti e Ana Caroline Acosta
Direção de fotografia: Marcelo Cabrera
Ano de lançamento: 2024
País: Brasil
Duração: 25 minutos
**Recifense, 40 anos, sociólogo. Antirracista, aliado do feminismo e das causas indígenas e queer, torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantém no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil no Letterboxd. Integrante do Podcast Cinema em Movimento e dos sites TemQueVer Cinema e Club do Filme.