UMA JANELA ESCANCARADA PARA UM MUNDO MÁGICO

Por Victor Russo*

A impossibilidade de acreditar em mentiras

Não são poucos os teóricos que falam do cinema como uma janela aberta para um novo mundo, para um universo mágico e distinto do nosso. Assim, somos levados a observar um microcosmo com regras próprias, em que aquilo que acontece na nossa vida real não se aplica em maior ou menor escala naquele local. Isso porque, até o filme mais realista está fadado a regras internas próprias, mesmo que nós, acostumados às convenções cinematográficas, nem percebamos as diferenças entre o nosso mundo e o mundo da obra.

Porém, o que vimos no cinema da última década foi a supressão do fantástico em prol de um realismo que aproxima cada vez mais filme e vida real. É quase como se vivêssemos em uma sociedade tão cética que fôssemos incapazes de acreditar naquilo que não pareça lógico no nosso mundo. Com isso, até gêneros acostumados a contar mentiras começaram a recorrer a eventos que soassem “realistas” para serem aceitos pelo público. Se isso fica mais claro e ganha força na trilogia “Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan, que ajudou a tornar o “sombrio e realista” a convenção do blockbuster atual, às vezes nem sequer percebemos que tal forma de narrar histórias está mais presente no cinema contemporâneo do que pensamos.

Se olharmos, por exemplo, para quem domina a bilheteria e o dinheiro de produção atual, a Marvel, e adentrarmos um pouco mais em suas obras, percebemos que fantasia é só fachada, é o realismo que domina também os filmes do estúdio que se vende como engraçadinho e colorido. Em um mundo com Deuses, mutantes, super agentes e alienígenas que invadem a Terra, é na (pseudo)ciência e no realismo que o MCU vai buscar a sua sustentação.

Os heróis usam uniformes, mas esses rejeitam a breguice dos quadrinhos para parecerem mais com roupas de pessoas “normais”. Um Deus vem à Terra, mas imediatamente uma cientista busca uma razão lógica para isso acontecer. Um homem constrói uma armadura e vira um super-herói, mas mais uma vez eles tentam nos convencer de que isso é algo possível. E por aí vai.

Então, vivemos hoje de um cinema que praticamente rejeita a mentira. Essa só volta a ser aceita (por uma parte mais reduzida e nichada do público) quando escancara a inveracidade das ações, como em franquias que riem ou extrapolam o próprio absurdo, como “Velozes e Furioso”, “Missão Impossível” e “John Wick”. Nesse mesmo sentido, vemos a fantasia morrendo cada vez mais no cinema de grande orçamento e sendo reduzida apenas a obras mais independentes, que entendem o potencial de imaginar o impossível (“A Lenda do Cavaleiro Verde” é um bom exemplo recente).

Quando a gente se permitia sonhar com filmes

“O Senhor dos Anéis” (a trilogia) sempre foi e sempre será a minha obra cinematográfica favorita, o que surge lá trás, quando eu assisti aos três filmes pela primeira vez assim que foram lançados e nunca mais os abandonei. Tornou-se um ritual, todo ano, pelo menos uma vez, eu e o meu irmão largamos tudo por um final de semana para rever a trilogia, seja a versão dos cinemas ou a estendida (na maioria das vezes, fazemos isso a cada quatro ou cinco meses).

Só que, se isso sempre foi comum em minha vida desde que eu tenho sete anos de idade, foi só recentemente que eu comecei a ter uma sensação diferente a cada reassistida. Inicialmente, acreditei que esse novo sentimento provinha da minha nova visão e conhecimento da linguagem cinematográfica, já que comecei a fazer críticas há quase cinco anos e, por consequência, estudo a sétima arte com mais afinco desde então.

Porém, algo ainda não me parecia certo e só fui perceber isso quando finalmente, ano passado, decidi fazer uma crítica de “A Sociedade do Anel” para o meu canal (16mm). Ali, dei-me conta de que eu tinha muita dificuldade de analisar o longa criticamente, já que a minha questão emocional com ele me cegava para uma percepção mais complexa da linguagem.

Foi só então que percebi que eu comecei a ver “O Senhor dos Anéis” de uma forma diferente, não por um conhecimento pessoal, mas pela transformação do próprio cinema atual. É como se eu tivesse revisitando um cinema que não existe mais, um abraço em um mundo distante que não é mais aceito pelo público contemporâneo. Se o sentimento cada vez mais é obscurecido pela racionalidade, a obra de Peter Jackson é da época de que sentíamos um filme, ao invés de apenas tentar entendê-lo. Essa janela se fechou, hoje entramos em uma sala escura para buscarmos apenas respostas lógicas, ao invés de nos entregarmos por completo a viver uma experiência mágica.

Uma Janela para um mundo (totalmente) diferente do nosso

Diferente de obras como “Harry Potter”, “Piratas do Caribe” e “Duna”, que criam a fantasia a partir de um mundo atual, passado ou futurista, respectivamente, “O Senhor dos Anéis” nada tem de real, científico ou histórico. Sua fantasia vem justamente de uma criação completa de um mundo mágico que só se assemelha ao nosso em objetos, certos cenários ou estilos de vida.

E, nesse sentido mesmo, tanto J. R. R. Tolkien quanto Peter Jackson estão muito mais interessados naquilo que diferencia aquele mundo do nosso, como os magos, os hobbits e o condado, os elfos e suas moradias de encher os olhos, os anões e seus túneis infinitos, criaturas inerentes àquele mundo (ents, orcs, nazguls, balrog etc) e elementos que se assemelham ao nosso mundo, mas se diferenciam por uma magia meio inexplicável (espada que brilha próxima aos orcs, Mithril e sua proteção, cajado mágico, Anduril capaz de enfrentar fantasmas, anel indestrutível e por aí vai).

Dessa forma, se nos livros de Tolkien nós éramos levados a imaginar e aceitar todo esse mundo, Jackson usou da janela que é o cinema para nos transportar a ele. E antes de falar sobre todos os artifícios cinematográficos que nos fazem acreditar que aquele mundo existe, vale a pena ressaltar justamente a diferença entre o universo da Terra Média e os já citados dos blockbusters atuais.

Se no MCU a vinda de Thor à Terra, a armadura de Tony Stark ou as partículas Pym têm uma explicação (pseudo) científica, pois sem elas o público atual rejeitaria a veracidade daquele universo, em “O Senhor dos Anéis” toda aquela magia simplesmente existe e somos levados a acreditar nela simplesmente pelo envolvimento com aquele mundo. Como funcionam os encantamentos do Gandalf? Por que a espada do Frodo brilha e o Mithril é indestrutível? Como os elfos não envelhecem? Como Gandalf renasce ou se comunica com as águias? Como o anel afeta seu portador e busca por um novo mestre? Essas e muitas outras perguntas não só não são explicadas, como o filme sequer se preocupa em abordar uma razão para que elas possam existir.

Isso porque, a Terra Média é um universo de magia aberta, em que a magia existe, mas não tem regras rígidas. Esse é o tipo de mundo ficcional cada vez mais ausente nos cinemas e na cultura pop. Até “Star Wars”, que um dia também não tinha regras tão bem definidas para sua galáxia tão tão distante, hoje usa seu universo expandido (séries, HQs, livros, guias visuais etc) para explicar essas lacunas.

Por isso, “O Senhor dos Anéis” parece cada vez mais distante das obras atuais. É um mundo em que a incerteza era permitida, já que a imaginação do público preenchia essas lacunas. É um mundo em que o escapismo era a essência, o transporte para um mundo mágico (que bebia bastante na forte das fantasias dos anos 1980, que um dia se inspiraram na obra de Tolkien) sem a preocupação com uma ligação tão direta com o nosso mundo. Por mais que existisse alguma proximidade, seja nas metáforas à fé cristã ou nas relações de poder, bem e mal, o principal interesse da obra de Jackson está no acreditar e adentrar essa aventura fantástica por lugares mágicos e enfrentando criaturas extraordinárias. É a busca por usar o cinema como uma forma de escapar da realidade em que vivemos e não de replicá-la.

O Senhor dos Anéis e o cinematográfico

Eu não poderia finalizar esse texto sem ao menos citar os elementos que permitem a existência do mundo mágico da Terra Média cinematograficamente. Se os livros do Tolkien existiam há décadas, foi apenas com o avanço tecnológico que essa história foi capaz de ser transportada para as telas no formato live-action.

Só que aqui, mais uma vez, Jackson usa o cinema e a tecnologia em prol do seu mundo mágico e não do realismo. É bem verdade que a evolução do CGI e da captação de movimento permitiu diversas coisas para a trilogia, como a existência de Gollum, os exércitos digitalmente replicados e as composições grandiosas. Mas até tais elementos respeitam a fantasia. O Gollum tem em sua essência uma desumanização física e de movimentação, enquanto as composições visuais são peculiares àquele universo. Jackson exibe Valfenda e Lórien não como fortalezas protegidas que pareçam a castelos europeus, mas com um deslumbramento mágico que aparece tanto na falta de portões físicos quanto na vontade de explorar a grandiosidade desses lugares. Dá a impressão que o próprio diretor está encantando por presenciar aquelas cidades que parecem conto de fadas e faz da câmera em planos abertos o seu olhar apaixonado.

O mesmo vai ocorrer com a construção sombria de Mordor, a ameaçadora torre de Osgiliath, o simples, mas deslumbrante Palácio Dourado de Rohan, a imponente e grandiosa Minas Tirith, e, claro, o aconchegante Condado com as tocas dos Hobbits.

Até mesmo o desenvolvimento dramático e as atuações, que cada vez mais se exige emoções mais realistas e às vezes até robóticas de tão frias (é só ver os filmes do Nolan), em “O Senhor dos Anéis”, essas são postas com uma expressividade que beira o brega (no bom sentido). Os elfos falam com voz empostada (sobretudo Galadriel, Celeborn e Elrond), Ian Mckellen dá uma voz grossa e sábia a Gandalf, Viggo Mortensen parece sempre expressar a justiça de um rei no olhar, Gimli está sempre gerando um humor físico que não é a intenção do personagem, enquanto Frodo e Sam não têm receio de chorar e retratar suas emoções sem qualquer sutileza.

E se tudo isso parece brega ou deslocado no cinema atual, menos tem a ver com as mudanças da linguagem cinematográfica e tudo tem a ver com uma sociedade que parece cada vez mais racional e incapaz de se entregar ao fantástico.

 

* Jornalista e crítico de cinema. Criador do canal 16mm e redator de críticas para filmesefilmes.com e o Profanos.

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