VAMPIROS DE ALMAS E A PARANOIA ESTADUNIDENSE

Por Sthefaniy Henriques*

Algo que sempre enfatizo em minhas matérias para o Tem Que Ver é que um filme é uma fonte para entender a sua própria época. Independente se símbolos ou elementos foram propositalmente embutidos ou não na narrativa, o filme sempre nos permitirá enxergar algo sobre o contexto no qual está sendo feito, assim como sua recepção também nos apresentará algo sobre a sociedade que o recebe.

Mesmo após 67 anos de lançamento, Vampiros de Almas é um filme que gera discussões devido ao seu subtexto. Lançado em meio a tantas outras produções de grande orçamento, o filme se destacou primeiramente por essa segunda camada, pela interpretação de espectadores sobre existir uma analogia política, algo que Jack Finney, escritor do romance e Don Siegel, diretor do filme, admitiram que não tiveram a intenção de fazer.

Atualmente, existe uma discussão mais diversa quanto ao significado de Vampiros de Almas. A passagem das décadas, mudanças sociais e uma maior puridade de acesso a obra geraram outros estudos com resultado bem distintos aos vistos durante a década de 1950 e 1960. Esse é o caso do estudo de Katrina Mann, ‘‘You’re Next: Postwar Hegemony Besiedged in Invasion on the Body Snatchers’’, onde os alienígenas representam os imigrantes (nos Estados Unidos, ‘‘alien’’ também significa imigrante) e a população de Santa Mira é a hegemonia branca e patriarcal estadunidense. E também o estudo dos brasileiros Victor Lachowski e Murilo Castro em ‘‘Comunismo que Veio do Espaço: A ficção científica como instrumento ideológico em Invasion of the Body Snatchers’’, onde afirmam que a ficção não tem mensagem política.

Eu particularmente gosto bastante da interpretação de Mann. Mas a intenção de trazer Vampiros de Alma para observação não é explorar interpretações mais recentes e, portanto, mais objetivas sobre o longa, mas sim, observar as interpretações realizadas durante o momento no qual ele será lançado. Para isso, é necessário nos situarmos quanto a história.

Ambientada na cidade fictícia e suburbana de Santa Mira, California, o Dr.Miles Bennell (Kevin McCarthey) começa a atender diversas pessoas que aparentemente estão sofrendo de delírio de Capgras, síndrome que se caracteriza pela crença de que seus parentes foram substituídos por impostores de aparência idêntica. A desconfiança generalizada parte da mudança repentina desses entes que começam a apresentar ausência de sentimentos. Inicialmente, Bennell não liga para as suspeitas de seus pacientes, mas, quando um cadáver é encontrado na casa de seu amigo, ele começa a acreditar. O corpo em questão não possuí características faciais ou impressões digitais, mas, pouco tempo depois, começa a se parecer fisicamente com o amigo de Bennell. Na mesma noite, um outro corpo, desta vez similar ao do interesse romântico de Bennell, Becky Driscoll (Dana Wynter), aparece no porão da moça.

Bennell e um grupo de amigos vão encontrar cópias de si mesmos na estufa do médico e logo descobrirão que tais corpos emergem de vagens gigantes. O grupo conclui que os moradores da cidade estão sendo substituídos enquanto dormem por essas criaturas, mas, quanto tão descoberta é feita, já é tarde. Na manhã seguinte, Bennell e Becky percebem que todos os habitantes da cidade estão possuindo tal comportamento estranho eles serão os próximos. Coagidos por essas novas figuras, é revelado que as criaturas que saem da vargem são uma forma de vida extraterreste sem humanidade, de natureza extremamente racional. Conhecidos como ‘‘pod people’’ ou simplesmente ‘‘pod’’, essa forma de vida acredita que a vida é melhor e mais simples quando não há necessidade de amor, desejo, ambição e fé. Com protótipo em Santa Fé, eles almejam levar esse ‘‘estilo de vida’’ para o resto dos Estados Unidos.

Estados Unidos na década de 1950: Uma sociedade atingida pela Guerra Fria

 Algo que podemos notar a partir dos acontecimentos da história, é que se trata de uma ficção cientifica. Na década de 1950, os filmes envolvendo alienígenas, viagens para outro planeta ou destruição da terra já eram extremamente populares, apresentando, inclusive, algumas marcas narrativas. Em 1965, por exemplo, Susan Sontag no artigo ‘‘The Imagination of Disaster’’ iria sugerir que as ficções científicas refletiam as ansiedades mundiais ao mesmo tempo que serviam para acalmá-las, mas de maneira inadequadas, utilizando-se da estética da destruição, deixando que o mundo fosse degradado antes de ser salvo. Essa percepção de Sontag contribui, principalmente, se lembrarmos que a ficção científica na década de 1950, supostamente, representava um papel discursivo e ideológico em suas histórias e, em alguns casos, a luta entre a liberdade dos Estados Unidos contra a ameaça do comunismo soviético.

A ficção cientifica se tornou popular ao explorar histórias que usavam elementos inovadoras e tecnologias para contar histórias, mas, sobretudo, exploravam justamente as ansiedades sociais. No gênero, foi comum contos sobre acidentes com armas nucleares e outros tipos de pesquisas cientificas, ataque de alienígenas e futuros pós-apocalíticos.  A década garantiu produções como O Dia em que a Terra Parou (1951), um filme sobre um alienígena que vem a terra portando uma mensagem de paz, O Mundo em Perigo (1954) produção cujo formigas que sofreram mutação por radicação atômica soviética atacam a sociedade e A Mosca da Cabeça Branca (1958), filme que 28 anos depois seria readaptado pelo mestre do horror corporal David Cronenberg.   

Diferente de O Dia em que a Terra Parou, os alienígenas foram representados, sobretudo, de maneira negativa. Projetados sempre como invasores, eles eram mudanças sociais que representavam ameaças a ordem dos Estados Unidos.  Dessa forma, podemos refletir: O que seriam os alienígenas de Vampiros de Almas?  Bom, não tardou para que os aliens significassem a invasão comunista no país. 

As duas leituras mais comuns realizadas durante a época e reproduzidas até a atualidade refere-se ao macarthismo. Robert Adams no livro ‘‘Science Fiction’’, resume perfeitamente as duas principais correntes interpretativas. Segundo o autor, o filme pode ser lido tanto como o alarmismo macarthista de direita, assim como uma sátira liberal de esquerda.

O Macarthismo ou ‘‘A Ameaça Vermelha’’ foi um movimento anticomunista que se iniciou nos Estados Unidos na década de 1950. Como um desdobramento da Guerra Fria, a política foi criada para evitar a expansão de valores associados a URSS nos EUA. A atuação da política, no entanto, foi uma espécie de ‘‘caça às bruxas’’ para indivíduos que, de algum modo, deferiam do resto da população ou que não apresentavam nada de diferente, mas, ainda assim, eram denunciados por seus vizinhos e colegas de trabalho. A perseguição se concentrou, principalmente, em funcionários públicos, mas também atingiu a políticos, artistas, professores e líderes sindicais. Entre os atingidos pela política de perseguição estavam Charles Chaplin, Lucille Ball e W.E.B Du Bois.

Pela paranoia do comunismo e a onda de perseguições estarem em alta, foi transferido para Vampiro de Almas um significado, uma interpretação do próprio tempo, de temores coletivos.

Se lermos o filme partir da percepção anticomunista, a cidade de Santa Mira está convertendo sorrateiramente seus valores americanos para comunistas. Sua população está se tornando um estereotípico que foi construído sobre o soviético: conspiratória, fria, pensando de modo coletivo e impondo que toda a cidade acate a tal comportamento. Além disso, o fato dos pods serem extremamente similares a quem vão substituir nos remete um dos principais pontos do macarthismo: o estimulo para a desconfiança do outro, pois, por trás de um americano, pode existir um comunista reacionário.

A segunda leitura mais comum da época é crítica ao macarthismo. Nessa, o filme se torna crítico ao clima conformista que a política gerou no país. Como o macarthismo recebeu apoio de uma parcela da população estadunidense, o filme criticaria justamente a falta de empatia e até mesmo perseguição que os estadunidenses assustados, representados como pods, terão com pessoas que pensam e se comportam de maneira diferente. Tal interpretação, por vezes, também foi interpretada como uma paranoia de grupos de esquerda e como crítica aos esquerdistas que, com medo da perseguição, não reagiam e lutavam contra a hegemonia ideológica que se formava.

Em suma, embora Vampiros de Almas não nasça com a intenção de ser político, é nítido que a sociedade da época o tornou e colocou em sua história os temores da própria realidade. Essa percepção política sobre o filme foi tão forte que o próprio remake de 1979 abraçará uma vertente critica, desta vez mais à esquerda, denunciando o consumismo do povo estadunidense e o neoliberalismo econômico.  

Vampiros de Almas está disponível com legendas em português na Internet Archive, acervo que reúne uma quantidade rica de materiais para consulta histórica.

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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