Por Sthefaniy Henriques*
Ao menos no ocidente e em países com um longo histórico de produção cinematográfica, é bastante comum que alguns eventos se tornem bastante representados cinematograficamente. Aqui no Brasil, com a promulgação de uma nova constituição (1988) e o fim da censura, filmes sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) começaram a ser produzidos, estando presente em nossa cultura cinematográfica desde então.
Se fizermos um levantamento breve e superficial, é possível que se encontre histórias puramente ficcionais, como Pra Frente Brasil (1982), obras baseada em histórias reais como O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), cinebiografias como Marighella (2019) e, por fim, documentários que dão voz aos perseguidos políticos e sobreviventes do período, como faz Lúcia Murat, uma cineasta que lutou contra a ditadura, em Que Bom Te Ver Viva (1989). Essas histórias existem e vão continuar a existir, pois a ditadura ainda é um passado que uma elite brasileira e política quer esconder, mas cabe ao cinema, uma arte igualmente política, lembrar.
Na mesma semana em que a Universidade de São Paulo (USP) diplomou simbolicamente quinze estudantes mortos pela ditadura enquanto lutavam pela democracia, um filme sobre outro militante pela liberdade chega aos cinemas. Essa coincidência me parece muito significativa, pois, quando se fala dos que resistiram ao regime militar, nomes como Carlos Marighella, Dilma Rousseff e Miriam Leitão costumam ser os mais mencionados. No entanto, há muitas outras histórias que, aos poucos, estão vindo à tona e ganhando visibilidade. Então, nesta semana, além dos quinze da USP, conhecemos, através do cinema, a história de José Carlos Novaes da Mata Machado, o Zé.
José Carlos Novaes, o Zé, foi um líder do movimento estudantil em Belo Horizonte. Durante seus anos como estudante de Direito na UFMG, presidiu o Centro Acadêmico Afonso Pena e foi vice-presidente da UNE, integrou a Ação Popular (AP) e, posteriormente, a Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Em 1968, foi preso durante o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), e passou oito meses detido no presídio Tiradentes (SP). Após ser solto, Zé se casou, teve filhos e seguiu militando, sobretudo em Fortaleza (CE). Zé foi morto por agentes do DOI-Codi/PE, em 28 de outubro de 1973, junto com o companheiro de militância na APML, Gildo Lacerda.
O que mais me chama atenção no filme é a escolha de retratar Zé em uma fase da vida que não se foca em sua militância, a qual o levou à prisão. No longa de Rafael Conde, Zé é apresentado já como um ex-presidiário, agora dividido entre cuidar de sua família e realizar pequenas ações contra o sistema represário. Eu particularmente acho essa escolha bastante interessante – e eficaz –, pois a história do personagem sobressai a temática da ditadura. Isso significa que, embora a ditadura seja o ponto de partida para os eventos da vida de Zé, Rafael Conde claramente dá maior destaque ao personagem em si, em vez de enfatizar o contexto histórico. Com isso, não estou dizendo que a ditadura se torna menor, mas sim que o filme não esclarece nada do contexto histórico. Ao privilegiar Zé e sua família, ficamos tão ausentes de informações, almendrados e com sentimento de constante suspeita, assim como eles e isso definitivamente é um acerto do filme.
A ausência de informações e o perigo constante em um cotidiano aparentemente banal são aspectos interessantes, pois não estão inseridos em uma abordagem que privilegia o psicológico dos personagens. Assim, o filme nega qualquer possibilidade de paranoia de Zé ou Lena, nega qualquer estilo narrativo que esteja relacionado a alucinações. A narrativa de Zé é crua e observativa; quando o perigo surge, somos surpreendidos, porque estamos tão desinformados quanto os próprios personagens.
Apesar da condução mencionada anteriormente, sabemos quem é o informante responsável pela captura de Zé. Embora esse personagem possa ser visto como um vilão, a direção continua a manter o mesmo distanciamento. Assim, temos a consciência de que, em algum momento, a presença desse informante será fatal para Zé, mas voltamos ao sentimento de banalidade do cotidiano a partir da seguinte questão: É provável que aconteça, mas quando? Dessa maneira, a vida de Zé volta a ser apresentada naturalmente, como se sua vida estivesse longe de lhe ser retirada nas semanas seguintes.
Zé é um filme que privilegia sua história, mas também consegue determinar uma unidade estilística interessante ao negar certos aspectos vistos em filmes recentes sobre a ditadura. Aderindo ao distanciamento, a uma abordagem mais crua, Zé apresenta mais um herói que lutou pela liberdade de nossa nação, porém em seu momento mais humano: como pai, marido, temente a segurança de sua mulher, de seus filhos, ainda que, para si e pelo Brasil, destemido.
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*Formada em História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.