Por Leonardo Lima*
Não raro se ouve que filmes sobre o Holocausto esgotaram seu potencial de tratar a temática pelo viés da entrega de algo novo para o público, suficientemente estimulante para levar à reflexão. Zona de Interesse, longa-metragem mais recente do diretor britânico Jonathan Glazer, põe por terra essa errônea percepção, a qual não apenas invalida a inesgotável inventividade da arte enquanto fonte problematizadora do mundo social, mas também, de forma perigosa, desmobiliza os indivíduos quanto à necessidade de continuamente se rememorar os horrores do passado no intuito que os mesmos não mais se repitam.
A preciosidade do filme de Glazer reside, em primeira instância, no fato de o seu foco estar integralmente posto nos algozes, e não nas vítimas do Holocausto, algo que, sem sombra de dúvida, potencializa os aspectos mais objetivos e sensíveis daquilo que a filósofa alemã de origem judia, Hannah Arendt, denominou de banalidade do mal – longe de demoníaco, este mal praticado contra judeus e outras minorias étnicas vistas como repulsivas e inferiores era cometido de modo constante e “automatizado” pelos oficiais nazistas, pertencendo, portanto, à esfera do trivial, àquilo que fora incorporado como parte de sua rotina de trabalho, sobretudo nos campos de concentração.
Em Zona de Interesse, esse mal banalizado, de tão comum de ser praticado (ou simplesmente ignorado), é observado não apenas sob a ótica de Rudolf Höss (Christian Friedel), comandante de Auschwitz, mas, também, a partir do dia a dia de sua esposa Hedwig (Sandra Huller) e seus filhos. A “modelar” família ariana em questão, apta a viver no Lebensraum (ou o Espaço Vital) proclamado pelo III Reich, reside justamente ao lado do mais famoso dos campos de concentração, tornando possível a seus membros cuidarem das plantas no quintal ou realizarem uma prosaica festividade de fim de semana tendo, ao fundo da paisagem, o som e a imagem da barbárie perene que se desenrolava logo atrás dos muros. E tudo isso como se fosse a coisa mais normal do mundo – e, de fato, esse cotidiano de gritos de dor e fumaça saída da chaminé do crematório lhes soava como uma realidade bastante normal e até mesmo justificável.
A abordagem até certo ponto fria e distanciada levada a cabo por Jonathan Glazer possibilita ao espectador escapar ao emocionalismo apelativo que costuma acompanhar obras dedicadas ao tema, e, por conseguinte, debruçar-se verdadeiramente sobre os mecanismos responsáveis por garantir a operacionalização das relações em sociedade, seja num sentido vertical (isto é, hierárquico), seja em termos horizontais (entre iguais). Zona de Interesse vai além, ainda, ao fazer isso de maneira sutil, sem entregar de bandeja a mensagem que deseja transmitir a quem o assiste – reconheça-se, porém, um certo tom proibitivo do filme, uma vez que ele demanda do público um conhecimento mínimo prévio acerca de alguns signos exibidos em tela e sua contextualização histórica.
O trunfo maior de Glazer é ter conseguido direcionar sua atenção para um tema já tão extensamente discutido recorrendo, para tal, a um recorte minimalista sobre os topos sociais através dos quais o mal é banalizado sem maiores esforços nem resistência. Não é preciso ser vilã(o) para se viver e adequar-se a um ambiente de barbárie socialmente legitimada; até mesmo quem demonstra ser um homem zeloso com os filhos e amantes dos animais (à moda João Batista Figueiredo), ou mesmo uma mulher afetuosa e com profundo senso de cuidado com a natureza, é capaz de servir, sem qualquer questionamento, como artífice a produzir e reproduzir ações reveladoras do lado mais sombrio da miserável condição humana.
**Recifense, 38 anos, sociólogo, aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!