O CRISTO REVOLUCIONÁRIO DE PASOLINI

Por Pablo Rodrigues*

Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas a espada.

Mateus, 10:34

A figura de Jesus Cristo é uma das mais icônicas e influentes da história da humanidade. É o grande pilar que fundamenta a maior religião do planeta, o cristianismo. Ao longo da história, este personagem foi representado das mais variadas formas, muitas vezes de maneira deturpada, distorcendo seus ensinamentos a fim de utilizá-los para a manutenção da alienação e do poder religioso na sociedade ocidental. No cinema, pode-se dizer que sua história seja uma das mais retratadas pela sétima arte. O primeiro filme sobre Cristo foi o curta francês La Passion, dirigido pelos criadores do cinema, os irmãos Lumière, em 1898, apenas três anos após o surgimento desta arte. Desde então, centenas de obras foram feitas sobre o personagem a ponto de, atualmente, quase todos os anos termos uma nova versão desta história nas telas.

No entanto, dentre tantas versões, uma se destaca, sendo considerada por muitos, incluindo o próprio Vaticano, o melhor filme já feito sobre a vida de Jesus. A obra em questão é O Evangelho Segundo São Mateus, longa-metragem de 1964 dirigido pelo grande cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, um ateu, marxista e homossexual. Embora seja irônico saber que a melhor representação do Cristo no cinema tenha vindo pelas mãos de um cineasta que representava muito do que o cristianismo condena, o que Pasolini fez nada mais foi do que resgatar uma importante dimensão desta história que a religião geralmente negligencia, a saber, a dimensão política. Neste texto, pretendo demonstrar a visão do diretor acerca da figura do Cristo e a importância desta em sua filmografia e como esta representação pode nos ajudar a refletir sobre a nossa atual realidade política e social.

 O Evangelho segundo Pasolini

Nascido há 100 anos, precisamente em 5 de março de 1922, na região da Bolonha, no norte da Itália, Pier Paolo Pasolini foi um dos maiores cineastas italianos e, na opinião deste crítico, um dos maiores de todos os tempos. Também foi um intelectual, poeta, escritor e militante político. Marxista convicto, foi membro do PCI (Partido Comunista Italiano), também era homossexual assumido em uma época de grande conservadorismo. Aliás, a sexualidade era um tema recorrente em seu cinema, retratada de maneira provocadora, problematizando os tabus da época. Não à toa muitos de seus filmes foram censurados em vários países. Suas obras também são marcadas por fortes críticas ao modo de vida capitalista, ao consumismo, às instituições sociais, em especial à união entre Estado e religião, característica marcante da sociedade italiana da época.

No entanto, ao mesmo tempo em que era um ferrenho crítico da religião cristã, em especial o catolicismo, Pasolini também era profundamente atraído pela figura de Jesus. Em sua visão, Cristo foi o oposto do que a Igreja havia se tornado. Segundo o diretor, esta havia abandonado o evangelho e se rendido ao autoritarismo da sociedade de consumo e precisava “retornar às suas origens, ou seja, à oposição e à revolta”. É nesse sentido que Pasolini decide, em seu terceiro longa-metragem, ir nas origens do cristianismo. Para isso, adapta de maneira quase literal aquele que considerava como o mais belo dos evangelhos da Bíblia, o de Mateus, dando a sua representação sobre o Cristo a partir de uma perspectiva até então nunca vista no cinema, a perspectiva marxista.

Em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) Pasolini foge do tom épico tão comum nas adaptações desta história para o cinema, optando pela simplicidade e pelo naturalismo, com uma fotografia semidocumental, com câmera na mão, planos irregulares, colocando o público dentro dos acontecimentos, como se estivéssemos junto com os personagens presenciando aquela história. Além disso, o diretor adota uma abordagem neorrealista, utilizando pessoas do povo para compor o elenco (o que pode gerar certo estranhamento nas novas gerações com relação às atuações). Para o papel principal, escolheu o jovem estudante catalão Henrique Irazoqui, uma escolha ousada que ia de encontro às representações visuais da figura de Cristo criadas ao longo da história, as quais geralmente o representam como homem loiro, olhos claros, padrão europeu.  

Além disso, diferente dos demais filmes sobre Jesus, os quais narram sua história a partir de uma perspectiva religiosa, sempre ressaltando a dimensão espiritual do personagem, O Evangelho Segundo São Mateus ousou ao não busca destacar o aspecto divino do Cristo, embora não o negue, mas sim o seu lado humano. Os milagres espetaculares do personagem estão lá, mas não são eles que chamam a atenção do público, ao invés disso, o que se destaca são os seus discursos, a sua palavra, bem como suas atitudes políticas. O Jesus do filme é afetuoso, solidário, piedoso, ao mesmo tempo em que se revolta e se irrita com as injustiças e desigualdades ao seu redor, grita contra a opressão cometida pelos poderosos, em especial os religiosos. O Cristo do Pasolini é subversivo, um revolucionário político que levanta sua voz contra o status quo.

Desta forma, ao deixar de lado o glamour das demais representações cinematográficas sobre Jesus e optando pela simplicidade, ao escolher colocar o povo como protagonista desta história, conectando-o de forma simbólica ao divino através das atuações e ressaltando o aspecto humano e social do protagonista, Pasolini resgata justamente aquilo que a religião abandonou ao longo da história do cristianismo, a dimensão política do Cristo e da fé. E faz isso sendo extremamente fiel ao texto bíblico, com todos os diálogos do filme sendo retirados diretamente do evangelho.

O Cristo e a religião

A atração de Pasolini pela figura de Cristo é visível em toda a sua filmografia. Além de O Evangelho Segundo São Mateus, outras obras do cineasta trazem personagens que são arquétipos, ou seja, modelos de Cristo, cada um de acordo com sua proposta. Em seu primeiro longa-metragem, Accattone – Desajuste Social (1961), o protagonista é um cafetão que é retratado como uma espécie de Cristo desvirtuado, que é opressor e oprimido ao mesmo tempo. Já em Teorema (1968) a figura do Cristo é representada pelo visitante que se hospeda na casa de uma família burguesa, promovendo a desestruturação da mesma. Além de outros filmes do diretor que também fazem uso deste tipo de personagem. Entretanto, o que todas essas representações tem em comum é que todos os “Cristos” da obra do Pasolini são personagens subversivos, transgressores, inconformados, que não se adequam ao meio opressor em que vivem e que abalam as estruturas sociais onde estão inseridos.

Esta visão acerca da figura do Cristo é justamente o oposto do que vemos ser propagado atualmente na religião cristã, principalmente no protestantismo, o qual vem crescendo significativamente, não apenas em número de adeptos mas em influência social e política. O cristianismo evangélico contemporâneo, principalmente o de base neopentecostal, praticamente renega o caráter político e revolucionário do Cristo, promovendo uma alienação com relação à realidade objetiva ao nosso redor. Impõem uma visão de mundo anacrônica, que não considera as mudanças sociais e culturais de nosso tempo (o oposto do que o próprio Jesus fez em sua época) e, ao impor essa visão, propagam preconceitos e promovem discriminação e violência das mais variadas.

Pessoas morrem todos os dias por conta dos discursos de ódio promovidos pela religião contra o público LGBTQIA+, contra as mulheres, as quais sofrem todo tipo de violência diariamente porque a religião diz que elas devem ser submissas aos seus maridos, terreiros de religiões de matriz africana são destruídos por conta da intolerância religiosa cristã, líderes religiosos enriquecem às custas da fé e do sofrimento alheio. E mais uma vez, assim como no passado, o cristianismo (desta vez protestante) se coloca como um dos braços opressores do Estado, sendo a base que fundamenta o neofascismo que se instaurou recentemente no mundo e também no Brasil com o atual governo.

Diante deste cenário, a crítica de Pasolini infelizmente se mostra ainda atual. A religião há muito abandonou suas origens. Indo mais além, diria que abandonou o próprio Cristo. Assim, nesses tempos de intensificação das desigualdades, das violências institucionais, das opressões, é fundamental resgatarmos a dimensão política e revolucionária deste personagem tão importante para a humanidade. Nesse sentido, O Evangelho Segundo São Mateus é um filme necessário, uma obra-prima feita por um artista inconformado, transgressor, que transformou Cristo em um arquétipo da pessoa revolucionária, nos lembrando que ser Cristão não depende de religião, muito menos de fé, que até mesmo um ateu como ele pode ser cristão, basta ter amor, solidariedade e a ousadia de sermos transgressores, subversivos e revolucionários diante das opressões, como o próprio Cristo foi.

Não precisamos de um Jesus fascista, homofóbico, racista e machista que apoia torturadores e tem “arminha” como símbolo. Ao contrário, precisamos resgatar o Cristo do evangelho, bem como de novos Cristos que levantem-se e lutem contra as injustiças de nossa realidade atual, contra o fascismo, a crueldade capitalista, a intolerância. É a luta solidária e coletiva que nos une e nos faz sermos aquilo que o próprio Jesus disse, “luz para o mundo”.

A seguir, o filme completo disponível no Youtube e a análise crítica feita por Pablo Rodrigues, no canal Cinema Em Movimento:

*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

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