Vestígios da Política da Boa Vizinhança em Interlúdio de A. Hitchcock

Por Sthefaniy Henriques*

A rendição do Japão em 2 de setembro de 1945, após as bombas lançadas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki, marca o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Entretanto, tal assunto não foi encerrado mundialmente ainda em 1945, a normalidade não foi resgatada e, tão pouco, não ocorreram consequências globais após o conflito. A Segunda Guerra foi um evento tão catastrófico que, principalmente, os países mais atingidos  continuaram a falar da guerra.

Os Estados Unidos, que entraram tardiamente na guerra e, logo, tornaram-se um dos grandes protagonistas do conflito, fomentou em sua nação e, principalmente através de Hollywood, a produção e o consumo popular de filmes sobre a Segunda Guerra. Tanto é que, durante os anos seguintes, filmes com temática ou figuras associadas ao conflito (soldados, por exemplo), compunham a lista das maiores bilheterias de seus respectivos anos.

O nosso filme em observação, Interlúdio, de Hitchcock, não ficou de fora desse fenômeno visto em solo estadunidense. O longa foi o segundo filme com maior arrecadação de bilheteria nos Estados Unidos em 1946 ao atrair para o cinema, segundo o site The Numbers, 61 milhões de pessoas.

Dado todo o sucesso de Interlúdio, precisamos, contudo, evidenciar um ponto que pode encher o coração brasileiro de orgulho: O filme de Alfred Hitchcock é ambientado no Brasil. Entretanto, eu não diria que a escolha do Brasil foi por meramente por um desejo de Hitchcock.

Ao longo dessa matéria, portanto, eu pretendo demonstrar que o Rio de Janeiro foi uma escolha conveniente para Hitchcock. Afinal, ele produziu e vendeu, mais tarde, uma fórmula que Hollywood impulsionou ainda nos anos de Guerra, momento no qual Interlúdio foi desenvolvido. 

A Trama Hitchcockiana e o lugar do Brasil na produção

 Como resgata o historiador Castro em seu artigo ‘‘Notorius: Hitchcock’s Good Neighbor Film’’, Hitchcock estava muito orgulhoso de, em seu primeiro rascunho de Interlúdio feito em dezembro de 1944, ter ‘‘antecipado’’ a bomba atômica lançada pelos Estados Unidos no Japão. Com data de lançamento para agosto de 1946, quase um ano após as bombas de Hiroshima e Nagasaki e um mês após os testes de bombas nucleares dos Estados Unidos no atol de Bikini, os produtores e Hitchcock, estavam confiantes que Interlúdio seria o primeiro filme da história sobre armas atômicas.

O urânio contrabandeado pelos vilões do filme, entretanto, é apenas um plano de fundo para Hitchcock vender a velha e muito bem executada história de romance fundada a partir um protagonista dividido moralmente entre o dever e o amor. Na trama do filme, a estadunidense naturalizada Alicia Huberman (Ingrid Bergman), ao ter seu pai alemão condenado por ser um espião, passa a refugiar a dor e a vergonha entre bebidas e homens, até que um agente do governo dos Estados Unidos, Devlin (Cary Grant), a convence de trabalhar para os Estados Unidos no Rio de Janeiro, onde nazistas amigos do pai de Alicia estão operando. Alicia, para completar a missão, acaba se casando com um espião nazista que contrabandeia urânio para a fabricação de bombas nucleares, porém seu verdadeiro amor é Devlin, seu contato estadunidense.

Alicia e Devlin, vivendo um amor quase impossível, se encontram recorrentemente em lugares do Rio de Janeiro. Ao longo do filme, vemos locais como o Cristo Redentor, Baía de Guanabara, Cinelândia, Mirante Vista Chinesa dentre outros locais, como o Hipódromo Jockey Club Brasileiro e a Orla de Copacabana. A grande curiosidade, entretanto, é que Hitchcock e seu elenco não desembarcaram no Rio, as imagens foram feitas pela equipe de filmagem e, mais tarde, projetadas no estúdio da RKO em um chroma-key (telão verde).

Mas uma coisa nós precisamos considerar: Por que, em plena década de 1940, Hitchcock decidiu ambientar um filme no Brasil? Segundo a historiadora Helen Nunes para a revista CaféHistória, no período no qual Hitchcock escrevia o roteiro, pouco se sabia que o Brasil fornecia minérios de urânios, muitos menos era conhecida a informação de que os Estados Unidos tinham um acordo com o Brasil sobre a venda de uranio brasileiro para o Projeto Manhattan.

No entanto, o fato de o Brasil ter, na época, um líder autoritário que flertou com forças alemães e uma região do Brasil com grandes influências germânicas, poderia facilitar parte da visão de Hitchcock para projetar seu filme. Nesse sentido, a realidade do Brasil poderia ser um solo fértil para o diretor planejar uma trama internacional, com alemães, bombas, romance e uma das cidades mais belas do mundo. 

Por mais que o diretor não tenha deixados registros de porquê sua história se passa no Brasil, eu proponho uma perspectiva um pouco distinta, associada ao Estúdio para o qual Hitchcock trabalhava e a política externa estadunidense.

 Brasil: um bom vizinho

Segundo o historiador Fernando da Silva Rodrigues em seu artigo ‘‘O posicionamento militar brasileiro durante a segunda-guerra mundial: aproximação com a Alemanha e o alinhamento com os Estados Unidos da América (1934-1942)’’, nos anos finais da década de 1930 e início da década de 1942, os Estados Unidos vão disputar com a Alemanha, de maneira velada, e em seu próprio continente, sua influência em países considerados latino-americanos. O Brasil foi um dos países mais disputados entre ambas nações, principalmente porque Getúlio Vargas teria aguardado o desenvolvimento da Segunda Guerra Mundial para, finalmente, comprometer-se com um possível lado vencedor, deixando os formuladores de políticas estadunidenses aos nervos.

Com a aliança com os Estados Unidos, o Brasil se tornou um bom vizinho. A entrada do Brasil na política da Boa Vizinhança estreitou os laços econômicos, políticos, militares e artísticos entre ambas nações. Se tratando unicamente do artístico, destaco o papel de Nelson Rockefeller (1908-1979) que, na época, era o principal acionista da RKO Radio Picture e Coordenador de assuntos Interamericanos. Rockefeller convenceu, além da RKO Radio Picture, a Walt Disney a se juntarem a adesão da Política da Boa Vizinhança.

O Brasil, então, se tornou o local de algumas produções da RKO, estúdio que já tinha atuação no Brasil desde 1936. Com Rockefeller, a RKO, além de distribuir mundialmente o longa da Disney Alô, Amigos (1942), enviará Orson Welles para o Rio de Janeiro para gravar ‘‘É Tudo Verdade’’ e, posteriormente, terá Interlúdio (1946) em seu catálogo. No entanto, devo ressaltar que não foi apenas a RKO e Disney que participaram da política. O, 20th Century Studios, dentre outros estúdios, se aprofundavam em histórias sul-americanas.

A Conveniente escolha de Hitchcock

Se retomarmos alguns pontos citados ao longo da matéria, podemos destacar que a criatividade de usar urânio e uma bomba atômica como impulsionador de sua narrativa, demonstra que Alfred Hitchcock estava consciente sobre os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Inclusive, seus filmes anteriores como Correspondente Estrangeiro (1940) e Um Barco e Nove Destinos (1944) também reforçam o conhecimento do diretor britânico.

E também podemos considerar que a ambientação brasileira na produção de Hitchcock foi extremamente positiva, afinal, como bem pontua Mônica Garcia em sua dissertação de conclusão de graduação em turismo, em toda produção existe um estereótipo de belezas naturais do Brasil e, a hospitalidade brasileira, se faz unicamente a partir de sua ambientação. Hitchcock representa o Brasil como um lugar belo e convidativo, exibindo uma característica da Política de Boa Vizinhança. 

A minha defesa é que, ao saber da Segunda Guerra Mundial, Hitchcock também conhecia a demanda do cinema e os bastidores dos estúdios. Uma vez que produtores e estúdios de Hollywood se uniram a agencias do governo para produzir filmes que eram ideologicamente importantes para assuntos de guerra e política externa, Hitchcock, quando começou a escrever o filme, sabia exatamente os elementos necessários para contar uma história sobre espionagem envolvendo Segunda Guerra, um tema lucrativo e necessário naquele momento.

Desta forma, conhecendo a nova onda de fazer filmes na América Latina devido a Política da Boa Vizinhança, Hitchcock escolhe o Brasil como plano de fundo para sua história. E, ao fazer tal escolha, o diretor, mesmo optando por não reproduzir o estereotípico brasileiro da época – Brasil como um país de samba, carnaval e de um povo positivamente malandro –, retrata o país como um lugar de grande hospitalidade. O Rio de Janeiro é descrito de uma maneira civilizada, onde a natureza e seus locais de sociabilidade são bem preservados pelo povo e pelas entidades públicas. O Rio é um lugar de ordem e de um povo de bem.

À vista do levantando, é perceptível que o Brasil foi o bom vizinho de Hitchcock.

Assista ao filme completo no link abaixo:

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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