“A FEBRE” E A LUTA PELA EXISTÊNCIA

Por Pablo Rodrigues*

“Me sinto como um caçador que está sempre de tocaia, mas sem uma presa”

A ligação com a natureza e, mais especificamente, com o lugar de origem, com o território, está na essência das culturas dos povos originários indígenas. É parte de quem essas pessoas são. Para elas, afastar-se da terra, de suas origens, de sua cultura, é como afastar-se de si mesmos. Nesse sentido, o filme A FEBRE (2019), da diretora Maya Da-Rin, explora de forma sensível e contundente, os impactos subjetivos e sociais do afastamento forçado dos povos indígenas de seus territórios, fruto da violenta imposição da cultura branca colonialista e do crescimento impiedoso do modo de produção capitalista.

O longa, premiado no festival internacional de Locarno em 2019, conta a história de Justino (Regis Myrupu), um homem indígena do povo Desana que há anos vive em Manaus. Viúvo, o mesmo trabalha num porto de cargas e vive na periferia da cidade juntamente com sua filha Vanessa (Rosa Peixoto), a qual trabalha em vários empregos como técnica de enfermagem, enquanto seu filho mais velho (Johnatan Sodré) vive em sua própria casa com sua esposa e filho. Porém, quando Vanessa é aprovada para estudar Medicina na Universidade de Brasília, Justino é acometido de uma febre misteriosa e persistente.

O roteiro, escrito pela diretora, apresenta Justino como um homem que, embora viva há anos na cidade grande, não consegue se adaptar ao seu modo de vida, sentindo-se sempre deslocado naquele lugar. O que é reforçado pelo eficiente trabalho de fotografia, que utiliza uma paleta de cores frias, desaturadas, reforçando a frieza do ambiente urbano, em especial o do trabalho, onde o protagonista é sempre mostrado espremido entre containers imensos, diminuído em meio à grandiosidade do cenário ao seu redor.

Nesse sentido, o design de produção faz um ótimo trabalho ao retratar este cenário como um ambiente mecanizado, com formas rígidas, quadradas, com poucas cores, em contraste com o ambiente da casa do protagonista, a qual possui formas mais variadas, com diversos objetos nas paredes, bem como a presença do verde das plantas e da terra, conferindo mais vida ao lugar, ao mesmo tempo que serve como alegoria da busca do protagonista por manter viva suas raízes culturais, ainda que diante da imposição do modo de vida branco em seu cotidiano. Inclusive, Justino evita, sempre que possível, a comida dos supermercados, os medicamentos receitados pelo médico e até mesmo comer na mesa de sua casa, preferindo fazer sua refeição em pé na porta da cozinha, olhando para o pequeno pedaço de natureza em seu quintal.

No entanto, ao se deparar com a possibilidade de ficar sozinho neste ambiente opressor, já que sua filha irá se mudar para Brasília, o personagem mergulha em um conflito existencial que traz à tona o adoecimento psicológico fruto do afastamento de suas raízes culturais e que o filme representa simbolicamente através da febre misteriosa que o acomete. Nesse sentido, o roteiro utiliza de maneira sutil e muito inteligente, de um elemento místico (a criatura que persegue o protagonista em seus sonhos) que serve não apenas como alegoria para a jornada do personagem, mas também como parte do conflito subjetivo a ser superado pelo mesmo.

É com esses elementos que o longa desenvolve um rico estudo acerca da condição dos povos originários indígenas no espaço urbano, revelando a luta destes para continuar existindo e resistindo. Através do olhar de Justino, vemos os desafios e violências (físicas, psicológicas ou simbólicas) que estas pessoas enfrentam em seu cotidiano. A invisibilidade social, a adequação imposta pelo modo de vida capitalista, em detrimento de suas culturas, através do consumismo, do trabalho explorado, da religião cristã hegemônica (principalmente evangélica) que renega as crenças indígenas.

Nesse sentido, a febre que acomete o protagonista mostra-se um artifício narrativo muito eficiente como representação simbólica dos sintomas de uma resistência silenciosa de Justino frente ao cenário opressor em que se encontra. E isso encontra ecos fortes com a realidade de milhares de pessoas indígenas do Brasil que vivem nas grandes cidades, alienando-se cada vez mais de suas raízes ou adoecendo física e psicologicamente devido ao cruel processo de resistência para preservá-las.

Por sua vez, o elenco do filme, quase todo formado por indígenas, está muito bem. Regis Myrupu (que além de ator, também é xamã) está ótimo como Justino, numa atuação contida, minimalista, porém, eficiente. Rosa Peixoto também está bem como a filha Vanessa e Lourinelson Vladimir, como o ex-capataz, transmite todo o preconceito de seu personagem de forma convincente. O filme ainda toma a sábia decisão de ser falado quase que inteiramente na língua nativa dos personagens, preservando ainda mais a identidade cultural do longa e invertendo o jogo, forçando nós, o público, a nos inserirmos na realidade dos personagens e nos adaptarmos à sua linguagem, assim como fizemos com os povos originários ao longo de séculos.

Enfim, A FEBRE é um filme sensível e necessário, que traz de maneira inteligente e sem cair em clichês, reflexões importantes sobre as consequências das inúmeras violências que cometemos contra nossos povos originários durante séculos, bem como a resistência destes diante dessa opressão. Uma obra que, infelizmente, permanece atual. Mais um belo exemplar do nosso cinema.

Disponível no GLOBO PLAY

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*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

 

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