Independente do espaço ou do tempo, ou de qualquer ressonância paliativa… A busca por sentir
Por: Breno Matos*
“Criar é viver duas vezes, é descobrir novas dimensões da realidade e transformar a angústia em arte.” — Orson Welles
John Marcher é um homem que acredita estar destinado a enfrentar um evento extraordinário e catastrófico em sua vida, algo que ele chama de “a besta na selva”. Marcher compartilha essa crença com May Bartram, uma mulher que ele encontra em uma visita a uma mansão inglesa e que decide acompanhar sua jornada. Ao longo dos anos, May se torna uma confidente e uma observadora paciente, tentando ajudar Marcher a viver no presente, mas ele continua obcecado com o futuro, esperando pela chegada da “besta”. Ele percebe, ao longo do texto, que sua obsessão com o futuro o impede de reconhecer e valorizar o amor e a devoção de May, resultando em uma existência vazia e desperdiçada. Esta é a novela escrita por Henry James, que já entregou alguns textos relevantes para a história da literatura, entre eles “A Outra Volta do Parafuso”.
Bertrand Bonello, por sua vez, dará o protagonismo para Gabrielle nesta sua versão futurística da novela de James. Num futuro não tão distante, onde as emoções se tornaram uma ameaça, Gabrielle decide purificar o seu DNA em uma máquina que a imerge em suas vidas passadas, livrando-a de qualquer sentimento forte, inclusive sua grande sensação de que uma catástrofe a espera. Porém, durante esse processo, ela encontra Louis, e sente uma forte conexão, como se já o conhecesse de outras vidas, em outras épocas. A medida que a obra avança, vamos percebendo o poder imediato de se aprofundar em algo em Henry prefere apenas sugerir.
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música. Para viver é necessário saber navegar por entre as forças invisíveis que nos movem, uma tarefa árdua e repleta de perigos, mas também a única forma de alcançar a plenitude.” — Friedrich Nietzsche
Como intermediação entre ser e ter e as banais complicações que cercam esta nossa jornada pela vida, encontramos refúgio em formatos profundos; intrínsecos, que possui algumas várias facetas, que podemos chamar de arte. Em “A Besta” Bonello acredita ser possível encontrar respostas e apegos a sensações primitivas do âmago do ser humano, ou em contrapartida pode-se simplesmente limitar o complexo imaginativo em prol de uma sanidade habitual comumente defendida pela maioria ao redor. Por mais simplório que possam tentar transformar esta natureza base; primitiva, ela é forte o suficiente para se interpor em qualquer nível intelectual, a ponto de, ao menos, causar uma estranheza desta limitação imposta. Gabrielle convive numa realidade onde, e já evocando novamente a literatura, podemos associar com Orwell em “1984”, que a sua realidade, sua atualidade, está completamente contaminada, e que a sua sensação de mal estar é visível e palpável, mas que ainda não sabe exatamente “o que”, e principalmente “quando”, e portanto a vê como uma “besta” que se estreita do futuro a passos sutis em busca do presente.
Seu formato mais futurístico lhe permite realizar uma adaptação em certo ponto mais fiel ao texto de James, mas ainda brincar com diferentes realidades deste mal-estar em várias épocas e períodos diferentes, o que aumenta o senso interpretativo da abordagem e abre novas camadas para a mesma. Acima desta sensação, ou percepção de uma geração, que podemos chamar de ‘ansiedade’, tem a forte impressão de falta. É possível abordar esta sequência da narrativa psicologicamente num aspecto mais amplo, mas numa visão um tanto mais filosófica, é quase uma busca, aos moldes gregos mais clássicos, por uma grande ânsia por “sentir”. Gabrielle, assim como Marcher, e também Winston, a vontade, o desejo, o amor profundo, a irá e o prazer lhes foram tirados de sua natureza através do tempo de suas gerações, suas travas internas, e até embates políticos. E no instante em que busca “purificar” a raiz da criação de suas emoções, nossa protagonista se vê de frente a algo muito maior enraizado em sua essência humana; sentir é viver, e perder tal coisa é deixar de existir, portanto não apenas se permite reviver suas memórias, como também decide criar novas, que assim possa vivenciar todos os sentimentos que não lhe são possíveis em sua realidade.
“O passado carrega consigo um peso de experiências que moldam nossa compreensão do presente, mas é no agora que nossas ações têm impacto. A alienação do presente em favor de um futuro ilusório nos priva da verdadeira liberdade e da capacidade de agir de maneira significativa.” — Hannah Arendt
Ainda que Gabrielle consiga vivenciar cada segundo destas lembranças e imaginações de outras possíveis vidas, em algum momento se depara com a realidade, que Bonello conduz magistralmente na cena em que ela, ao perceber que “A Besta” que a aguardou chegar no futuro, já se fazia presente, e ao desabar de joelhos frente a cruel constatação epifânica berra com todas as suas forças numa sensação de desespero, em mais uma brilhante atuação de uma das melhores atrizes deste novo século, Léa Seydoux.
“A Besta” é, além de conter um incrível trabalho técnico e visual referente as suas construções de época, cinematografia, e uma poderosa trilha sonora, acima de tudo, uma verdadeira jornada pelo apelo humano em busca de um “sentir”. Quando a própria realidade já não é mais interessante o suficiente, profunda o suficiente, ou real o suficiente, as lembranças, ou a criação delas, são o afago na ânsia e no desespero por sentir.
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*Escritor e crítico de cinema, Breno é autor dos livros; Por Trás de um Sol e Sobre Pássaros e Caracóis. Também analisa filmes recém lançados e divulga grandes autores da sétima arte através de sua página Lanterna Mágica Cinema no instagram. Além de também ser o criador e organizador da premiação amadora de cinema Kurosawa de Ouro. Seu filme do coração é Persona, e respectivamente Ingmar Bergman seu diretor favorito.