A Viúva Clicquot (Crítica)

Ingenuidades Narrativas no Cinema de Época Contemporâneo

Por Breno Matos*

Existe uma certa semelhança na forma como se enxerga o cinema e a literatura. Ambas tem duas grandes categorias de obras; uma mais ficcional de gênero, e outra na qual em um chamamos “drama” e no outro “romance”, mas com o mesmo propósito. Acredito que ambas intenções funcionem muito bem separadamente, com seus propósitos e modelos de visões. No entanto, é extremamente difícil de se encontrar obras que mesclem as duas coisas e saía algo competente – ainda que veja essa mescla de maneira não intencional acontecendo, o que torna o problema ainda maior. Enquanto que a ficção busca um tratamento mais “leve” com relação a vida através de sua estória, muitas vezes escapistas, o romance/drama busca uma contemplação maior em cima de suas temáticas, num tratamento mais frontal, cru, e por vezes simbólico ou lírico. Vejo essa mescla não-proposital atual como um sintoma dos últimos tempos; enquanto no romance/drama você necessita de um comprometimento maior com relação a atenção empregada ao tratamento, mensagens e reflexões – uma grande dificuldade para a sociedade moderna com tantas distrações ao redor –, tornando a maior parte das experiências “tediosas” por falta da “entretenimentização” nessa categoria; que é a necessidade por uma trama “redonda” com personagens muito marcados: o protagonismo, o vilão, a moral da história, o ponto de virada, e por aí vai, características típicas do outro modelo; a ficção de gênero –  geralmente as que mais se popularizam e ganham maior atenção. Ambos os casos podemos ter grandes exemplos de qualidade, mas são propostas completamente opostas. Não é possível construir uma história em que o foco é a profundidade narrativa se a base de sua estrutura é a previsibilidade de uma “jornada do herói” toda demarcada. E este é o maior problema de “A Viúva Clicquot”.

Protagonizado por Haley Bennett e dirigido por Thomas Napper, “A Viúva Clicquot” apresenta a história de Barbe-Nicole Ponsardin, uma viúva de 27 anos que depois da morte prematura do marido, desrespeita as convenções legais e assume os negócios do vinhedo que mantinham juntos. Sem grandes apoios, ela passa a conduzir a empresa e a tomar decisões políticas e financeiras que desafiavam todos os críticos políticos da época ao mesmo tempo em que aos poucos constrói uma indústria de Champagne, se tornando uma das primeiras empresárias do ramo no mundo. Hoje, a marca Veuve Clicquot é uma das mais reconhecidas e premiadas do setor e sua ousadia já a sustenta por 250 anos de história.

Assim como boa parte dos filmes de época biográficos atuais, que conseguem bons investimentos e distribuições, o tratamento visual é muito marcado; a cinematografia de Caroline Champetier é de encher a tela, com toda a sua delicadeza em capturar seus personagens através dos reflexos e sombras, aproveitando muito bem o espaço amplo para se trabalhar, e claro que a boa reconstrução de Jean-Hugues de Chatillon do período retratado, e os excelentes figurinos de Marie Frémont, ajuda bastante nisso. Gosto do trabalho de Bryce Dessner aqui também, são composições de trilha que evocam bem as sensações e a atmosfera do ambiente, seja emocional ou externos, ainda que por vezes mal inseridas na montagem de Richard Marizy.

Tom Sturridge e Sam Riley têm seus momentos, mas acredito terem sido pouco utilizados de forma satisfatória, pois o enredo busca um ponto de vista muito claro a partir de Haley Bennett, que atua muito bem, mas sufocando o desenvolvimento de outros que poderiam contribuir indiretamente em nossa protagonista fortificando sua construção dramática, e o mesmo pode ser dito de Bem Miles. Bennett certamente é bastante expressiva, e foi uma ótima escolha visando o momento de luto escolhido a ser retratado por parte de nosso cineasta em relação a história, no entanto o luto em si tem sua atenção prejudicada justamente pela falta de profundidade no tratamento linguístico do mesmo. Há diversas sequências que poderiam ter o impacto emocional e atmosférico desejado se o desenvolvimento das temáticas que pairam na própria decupagem ganhasse mais atenção e refino, tornando tais momentos mais rasos do que o esperado.

A direção de Thomas Napper não é de todo irregular. Gosto de como procura sempre deixar as cenas respirarem através de sua protagonista, e como tenta capturá-la dentro de seus momentos e prazeres pessoais reforçando sua forma de lidar com a vida, trabalho, e com as pessoas, diferente dos outros a sua volta, mas ainda se encontra preso dentro dos mesmos problemas citados acima; em momentos cruciais da trama de construção dramática e atmosférica se perde em tentar decupar de forma genérica tais sequências, seja na captura em si, na adrelina, nas reações um tanto exageradas para criar os pontos demarcados de reviravoltas, etc. justamente pela falsa necessidade de que é preciso ocupar as estórias com heróis, vilões, pontos de viradas, e uma conclusão final definitiva, mesmo sendo um drama biográfico, e não uma ficção de gênero.

Outro grande problema que cerca “A Viúva Clicquot”, mas também boa parte das obras de época biográficas atuais, é a tentativa de inserção de debates e temas que são muito recentes de nossa sociedade num período em que o pensamento sequer havia raízes para brotar sem represálias fervorosas. Algumas das questões comumente levadas para a época vitoriana, como a igualdade de tratamento dos sexos, era um discurso reduzidos a mesas de chá burguesas rodeada por mulheres longe das atenções masculinas que dominavam todo tipo de poder existente, e qualquer questionamento sobre essa hierarquia era uma afronta aos líderes, seja de terras, negócios ou do ramo político, e assim como em qualquer grande ditadura ou opressão sobre um grupo de pessoas na sociedade, tais pessoas só conseguiam recorrer e lutar contra suas realidades através de mensagens indiretas por meio da arte, ou em revoluções suicidas, porém, tal infeliz fato destes períodos é completamente ignorado aqui, e a sequência do julgamento final reflete muito bem essa tentativa ingênua de transmitir essas discussões atuais para um passado de outra realidade.

FICHA TÉCNICA:

Título Original: Widow Clicquot

Duração: 90 Minutos

País: Estados Unidos

Ano: 2023

Direção: Thomas Napper

Roteiro: Erin Dignam, Tilar J. Mazzeo e Christopher Monger

Gênero: Drama Biográfico

Elenco: Haley Bennett, Tom Sturridge, Sam Riley e Bem Miles

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*Escritor e crítico de cinema, Breno é autor dos livros; Por Trás de um Sol e Sobre Pássaros e Caracóis. Também analisa filmes recém lançados e divulga grandes autores da sétima arte através de sua página Lanterna Mágica Cinema no instagram. Além de também ser o criador e organizador da premiação amadora de cinema Kurosawa de Ouro. Seu filme do coração é Persona, e respectivamente Ingmar Bergman seu diretor favorito.

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