Por Pablo Rodrigues*
“Jo fun aye (Dançar pra vida, em iorubá).
Dança pra vida, meu filho.
Porque o amor é complexo pra caralho”.
Por muito tempo, a representação cinematográfica da periferia brasileira e da experiência do ser negro/a nestes locais se deu apenas pela perspectiva da violência, denunciando as opressões, o racismo estrutural e o descaso estatal para com essas pessoas, principalmente no período da Retomada do cinema brasileiro, a partir do sucesso de CIDADE DE DEUS (2002), obra de importante denúncia numa época onde essa realidade não tinha muito espaço no nosso cinema. No entanto, ainda que necessárias enquanto denúncia social, a predominância dessas narrativas contribuiu para reforçar certos estereótipos sociais sobre as pessoas negras, como do jovem negro criminoso e que nas comunidades periféricas só existe violência e sofrimento.
Assim, é interessante perceber como o cinema negro brasileiro contemporâneo vem, nos últimos anos, caminhando na contramão dessas narrativas, buscando desconstruir os estereótipos acerca da periferia e da negritude que o cinema, intencionalmente ou não, reforçou. Obras recentes como MARTE UM (2023) de Gabriel Martins e O DIA QUE TE CONHECI (2024) de André Novais Oliveira são um exemplo disso. É nesse contexto que se insere KASA BRANCA (2024), primeiro longa-metragem do cineasta carioca Luciano Vidigal.
Dirigido com uma sensibilidade ímpar por seu diretor, o qual coloca em tela muitas de suas experiências pessoais, KASA BRANCA se propõe a desconstruir os estereótipos acerca da periferia e da população negra que nela vive, nos convidando a enxergar a experiência dessas pessoas e a própria favela, a partir de uma outra ótica que não a da violência, mas sim a dos afetos. O diretor constrói um filme leve, sensível, que traz toda a beleza e potência da favela e dos afetos do povo preto de forma leve, sensível, ao mesmo tempo que profunda e crítica.
A trama nos apresenta Dé (Big Jaum), um jovem que vive na periferia da Chatuba, em Mesquista, no Rio de Janeiro e que, após a morte de sua mãe, passou a cuidar sozinho de sua avó, Dona Almerinda (Teca Pereira), a qual está com Alzheimer em estado avançado. Após descobrir que a mesma está em estágio terminal da doença e tem pouco tempo de vida, Dé contará com a ajuda de seus dois melhores amigos, Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), bem como de sua comunidade, para proporcionar que sua avó aproveite da melhor forma possível seus últimos dias de vida.
Em uma das primeiras imagens do filme, vemos em close, o jovem Dé diante de sua avó, a quem o mesmo está dando banho. Seus gestos para com ela são delicados e carinhosos. Essa linda cena inicial traz um simbolismo muito sensível que dá a tônica de muito do que veremos ao longo de toda a obra com relação ao seu conteúdo temático. Um jovem (representação da esperança para o futuro) cuidando com afeto e respeito de quem veio antes dele, ou seja, sua ancestralidade.
Esse tipo de sensibilidade se faz presente ao longo de toda a obra, a qual discute temas como amizade, afeto, luto e, principalmente, a força do coletivo. Em KASA BANCA, as personagens retiram suas forças do coletivo, da comunidade onde vivem, da favela. Nesse sentido, o roteiro, também escrito por Vidigal, cria personagens carismáticos e “reais”, cujos dramas se assemelham aos de tantos outros que vivem nas periferias do Brasil, dramas estes que o roteiro entrelaça muito bem ao senso de coletividade da comunidade, que diz respeito não apenas ao presente, mas à ancestralidade daquelas pessoas, como na trama principal já referida.
Outro aspecto interessante do roteiro é a forma como a masculinidade é representada no filme. Vemos homens jovens que vivem sua sexualidade sem se reprimir e que expressam seus afetos uns pelos outros sem preconceitos. Essa representação da masculinidade acaba sendo mais uma desconstrução proposta pelo filme acerca dos estereótipos do jovem negro periférico. Assim, para refletir tudo isso esteticamente, a direção opta por uma abordagem mais “realista”, contudo, diferente de outros filmes sobre o universo das favelas, aqui temos uma estética colorida, com uma fotografia que usa de muita luz e cores quentes, para refletir em tela os afetos e a diversidade presente naquele ambiente.
Soma-se a isso o ótimo elenco que abrilhanta a obra. A começar pelo trio principal, que esbanja carisma e talento. Big Jaum, Diego Francisco e Ramon Francisco (todos ótimos) nos cativam desde o início e apresentam uma química que nos faz acreditar que aqueles jovens de fato são amigos de longa data. O estreante Big Jaum consegue transmitir a complexidade de seu personagem Dé com competência. Outro destaque é Gi Fernandes, que está muito bem como uma personagem que representa muitas outras mulheres jovens da periferia, tendo que cuidar sozinha de um filho enquanto tenta realizar seus sonhos pessoais. O filme ainda conta com a participação mais que especial de Teca Pereira que, sem dizer uma palavra, nos emociona como Dona Almerinda. Também integram o elenco Roberta Rodrigues e Babu Santana que, embora pontuais, estão competentes em seus papéis.
Assim, ao desconstruir a imagem estereotipada acerca da favela e da população preta que dela faz parte, rejeitando direcionar sua lente para as violências desse ambiente (mas sem negá-las) e optando por destacar os afetos e a força da coletividade desse povo, Luciano Vidigal, com KASA BRANCA, nos força a desconstruir nossos próprios preconceitos acerca desse contexto. E numa sociabilidade capitalista como a que vivemos, onde o individualismo egoísta norteia as relações sociais, a vivência coletiva e afetuosa do povo preto na periferia acaba sendo tanto uma referência para nos inspirarmos quanto uma forma de resistência.
Assistindo ao filme, me veio à mente uma filosofia africana expressa pelo termo Ubuntu, o qual, dentre outros significados, expressa também o sentido de nos constituirmos enquanto seres humanos nas relações que estabelecemos uns com os outros. Nesse sentido, Ubuntu significa “eu sou porque nós somos”. KASA BRANCA é um exemplo dessa filosofia e é nela que se encontra também a dimensão política do filme.
Portanto, KASA BRANCA é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. Uma obra tocante, sensível, que diverte e emociona na medida certa, além de nos provocar a desconstruirmos nossos preconceitos e enxergar que, para além das violências proporcionadas pelo racismo estrutural de nossa sociedade à população preta e periférica, esta não se resume a isso. Como todas as pessoas, o povo preto também tem seus afetos, seus desejos, seus amores. E no contexto capitalista que vivemos, a afirmação desses afetos é uma forma de resistência.
Agradecimentos à
Sinny Comunicação
*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.