QUANDO A QUALIDADE DOS ARTIFÍCIOS É EQUIVOCADAMENTE UTILIZADA
Por Breno X. Matos*
Em um cenário permeado por uma polarização ideológica acentuada, tensões étnico-raciais e um palpável ceticismo em relação às entidades governamentais, uma considerável parcela da população estadunidense abriga uma inquietação arraigada, suscitada pelas fissuras sociais e políticas, temerosos de que as discordâncias vigentes desemboquem em um embate interno de proporções alarmantes. As plataformas digitais e os veículos midiáticos desempenham um papel preponderante na disseminação e amplificação desses receios, frequentemente incitando narrativas apocalípticas e exacerbando as dissensões entre facções políticas antagônicas. Tal apreensão, ou ao menos a reflexão acerca desta possibilidade, encontra eco no panorama cinematográfico norte-americano, onde se materializa como meio de expressão de visões, posicionamentos ou angústias; clássicos como “Invasores de Corpos”, “Fuga de Nova York” e “Eles Vivem”, assim como produções contemporâneas “V de Vingança” e “Filhos da Esperança”, transitando até mesmo por distopias juvenis como “Divergente” e “Jogos Vorazes”. E é nesse contexto que se insere o filme em questão.
Alex Garland se destaca como um cineasta cujas obras frequentemente polarizam tanto o público quanto a crítica especializada. Sua obra mais lembrada “Ex Machina”, é um exemplo claro dessa polarização, provocando uma ampla gama de opiniões que variam desde críticas ácidas até elogios efusivos resultando em premiações como o Oscar. Pessoalmente, não me identifico como um ardente defensor dessa obra ou do autor em si; no entanto, reconheço na trama uma tentativa inicial de se afastar da espetacularização visual em favor de uma substância discursiva mais profunda, ainda que tal tentativa seja fraca. Garland demonstra uma habilidade singular em provocar debates e reflexões por meio de suas narrativas. “Ex Machina”, por exemplo, levanta questões complexas sobre a natureza da inteligência artificial, a ética da criação e controle de seres sencientes, e os limites da interação entre humanos e máquinas. Essa abordagem, embora nem sempre seja totalmente bem-sucedida em sua execução, evidencia a busca do cineasta por uma narrativa que transcenda meramente o entretenimento visual. No entanto, é importante reconhecer que as polarizações em torno das obras de Garland também podem ser atribuídas à sua estética cinematográfica distintiva. Seus filmes frequentemente apresentam uma estética visual arrojada e estilizada, que alguns espectadores interpretam como uma tentativa de compensar possíveis lacunas na trama ou no desenvolvimento dos personagens.
“Guerra “Civil” se passa em um futuro não tão distante, quando uma guerra civil se instaura nos Estados Unidos, uma equipe pioneira de jornalistas de guerra viaja pelo país para registrar a dimensão e a situação de um cenário violento que tomou as ruas em uma rápida escalada, envolvendo toda a nação. No entanto, o trabalho de registro se transforma em uma guerra de sobrevivência quando eles também se tornam o alvo. A obra ostenta, incontestavelmente, qualidades técnicas e sonoras, mas é muito curioso em como esses aspectos encontram-se em abundância no cinema contemporâneo, principalmente hollywoodiano, ainda que boa parte deles não digam nada de relevante enquanto linguagem para além disso. Muitos encontram-se emaranhados na tessitura visual dos artifícios, ponderando sobre sua eficiência de forma isolada. Contudo, creio que a crítica essencial a se realizar aqui, ou em qualquer outra obra, reside na habilidade de articular uma concepção, uma reflexão, uma interpretação sobre o “todo” de cada filme, daquilo que querem transmitir. Isoladamente, os elementos podem resplandecer em beleza ou competência, mas também podem, concomitantemente, revelar-se destituídos de substância pela superficialidade de seu conteúdo.
As sequências de ação destacam-se pela excelência, e o elenco apresenta-se em um engajamento notório. Particularmente gosto de Moura, é um bom ator, mesmo que não faça nada além do básico aqui, pela falta de texto. Admiro a interpretação de Dunst, que emana uma aura de melancolia impregnada pelas cicatrizes de suas escolhas, entretanto, a narrativa impede de adentrar o âmago de seus personagens, de humanizá-los, e o motivo não é de todo aparente. No panorama geral, o enredo transita por uma miríade de temáticas sem aprofundar-se em nenhuma em particular. Seria arriscado até rotulá-lo como um drama de estrada indie protagonizado por jornalistas mergulhados na melancolia de sua realidade, pois nem mesmo nos enredos mais simplistas parece encontrar âncora.
Existe uma perspectiva acerca da tendência à espetacularização da tragédia inerente aos americanos, que, de forma paradoxal, recorre à humanização de indivíduos cujas ações ou trajetórias são pautadas por problemáticas, tudo sob uma lente “poética”. Tal abordagem parece funcionar como uma cortina de fumaça, concebida para encobrir um sentido exacerbado de patriotismo e egocentrismo, mas, lamentavelmente, revela-se apenas superficialmente penetrada, essas questões jamais são realmente relevantes para a narrativa, sempre ficam em segundo, ou até terceiro plano. Como resultado, a obra nunca cria uma verdadeira ressonância temática, deixando-a mais vazia do que algo que sugere ter realmente alguma coisa a dizer.
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*Escritor e crítico de cinema, Breno é autor dos livros; Por Trás de um Sol e Sobre Pássaros e Caracóis. Também analisa filmes recém lançados e divulga grandes autores da sétima arte através de sua página Lanterna Mágica Cinema no instagram. Além de também ser o criador e organizador da premiação amadora de cinema Kurosawa de Ouro. Seu filme do coração é Persona, e respectivamente Ingmar Bergman seu diretor favorito.