O atual público midiático e a busca inconsciente do inalcançável em “O Homem dos Sonhos” de Borgli
Por Breno Matos*
Em um certo nível, é a insatisfação humana e sua busca por algo inconscientemente inalcançável que rege as atitudes e criações dentro das sociedades desde sempre; gera o senso de urgência para se fazer algo. Ao mesmo tempo que se busca uma zona de conforto, é a própria zona de conforto que cria o tédio e a sensação de insatisfação, e o ciclo se inicia novamente. E é curioso como a visão de terceiros sempre é possível encontrar paz e qualitativos suficientes em situações externas, enxergando o problema de certos eventos históricos, e sabendo a solução, mas isso sempre com muito distanciamento de espaço e tempo. Apesar disto ser algo sobre o próprio eixo, em algum momento, a dita “sociedade” passou a pensar em conjunto, no coletivo. Ao tentar definir a “felicidade” Aristóteles diz que isto só é alcançável vivendo bem e fazendo suas coisas bem. Claro que essa definição é muito ampla, então partimos para Péricles, onde diz que a felicidade vem da liberdade e coragem. Se pensarmos que todas as guerras, ou quase todas, vieram deste discurso inconscientemente, tem algo de muito distorcido aqui.
Se a liberdade seria então a felicidade, o que podemos tirar como “liberdade”? Kant defende que a liberdade verdadeira é não se fazer o que se quer, se não é apenas um escravo do desejo. Mas partindo para o cinema, podemos pensar que existe um certo consenso com relação a que os cineastas ao longo do tempo estariam insatisfeitos e também o que veem como a solução para a felicidade e liberdade; uma igualdade para todos. Em “A Mulher de Todos”, Júlio Bressane diz que a liberdade individual só é alcançada quando temos a liberdade coletiva. Bom, então acho que há uma luz no final do abismo pela busca do bem comum. Chaplin discursa em seu “O Grande Ditador” o mesmo princípio abordado em uma frase anos depois no cinema de Bressane, e isso passa a ser parte da essência pelas lutas através dos tempos modernos dentro da arte, desde os anos 60 pela inclusão de ter uma voz participante, para os jovens “rebeldes”, que vai desde a literatura como “O Apanhador no Campo de Centeio” de J.D. Salinger, e no cinema como “Juventude Transviada” de Nicholas Ray. Mas também a luta pela diversidade de cor, e na forma de se fazer cinema, e a insatisfação com o padrão de suas épocas, e daí surgem os movimentos mais conhecidos como Cinema Novo, Nouvelle Vague, e a Nova Hollywood, e tudo envolto de muitas críticas, não apenas a linguagem, mas também a sua sociedade da época. E segue-se assim até os tempos de hoje. Com a evolução da tecnologia, e o surgimento das redes sociais, e o constante uso exacerbado, claramente causaria consequências e efeitos colaterais, na forma das pessoas se tratarem, e na forma como avaliam umas as outras. Obviamente, o discurso segue o mesmo de sempre; a busca pela felicidade e liberdade, incluindo a defesa-consenso que vem desde o século passado sobre o coletivo abraçado igualmente pelo respeito de todos. Mas curiosamente a união dos indivíduos pela internet ao redor do mundo, e o consenso positivo pela busca do mesmo, também tiveram seus próprios efeitos e consequências. O que nos leva (finalmente) a nova obra de Kristoffer Borgli.
“O Homem dos Sonhos” vai acompanhar a história de Paul Matthews, interpretado por Nicolas Cage, que é um professor e pai de família comum, quando um dia todos a sua volta, e boa parte do país, passam a ter sonhos estranhos com ele frequentemente, e essa estranha epidemia começa a lhe dar muita fama, mas também muitas complicações. Tomado pela insatisfação de sua sociedade atual, na forma como buscam “denfeder” uns, agredindo e “cancelando” outros, que Borgli discorre sua obra, mas também falando sobre frustração e insatisfação pessoal, e a forma como a estrutura do mundo atual parece injusta e fútil.
Numa leitura inicial, é possível ver muito rapidamente a essência do primeiro discurso de Borgli logo nos primeiros desenrolares da trama. O cineasta não parece incomodado em não, ou ao menos não consegue, ser sutil, na forma como discorre seus temas. Há sempre personagens dispostos a dizer com todas as letras o que se passa em determinada situação ou qual o ponto-alvo de crítica por parte da narrativa. Essa primeira temática, em que destila sobre as redes sociais e o tratamento, beirando o aleatório e superficial, de seu público consumidor, apesar de soar muito bobo a princípio, é uma realidade que não é difícil de ser notada seu impacto cada vez maior. Essa reação extrema do público que se pode esconder através de uma tela digital para cuspir frases de ódio supérfluo tem surgido efeitos cada vez piores na sociedade moderna. Mas como se fazer uma crítica, dentro de uma obra de arte, em que se busca uma qualidade no produto, ao mesmo tempo que se busca alcançar o público-alvo e ser entendido? Dizer claramente nunca foi a solução para a arte. Na verdade, a simbologia, e o indireto, continuam a ser os melhores recursos contra a obviedade e a mediocridade. O exercício de mostrar e não dizer, é sempre o mais criativo e interessante de se ver e ouvir. Mas é impossível imaginar que um público tão prematuro, independente da idade, que faça parte do alvo de Borgli aqui seja capaz de sequer entender uma trama em que a temática central da crítica seja indireta e não as claras. Portanto, a maior falha na abordagem de suas promissoras críticas parte da indecisão do cineasta de sempre querer abraçar ambas as vontades e públicos em sua obra; ao mesmo tempo que tenta fugir da obviedade e da superficialidade narrativa, não consegue o fazer de todo, pois também busca atingir o público que crítica “facilitando” na construção linguística a compreensão dos discursos de maneira básica, tornando a obra cada vez mais pobre e didática.
Esses comportamentos notados por Borgli na sociedade em que critica, já é algo preocupante para com as gerações futuras, mas se pensar que essa “evolução” da tecnologia e o uso da mesma, ocorreu de forma tão depressa, que para uma geração anterior, como a de Paul Matthews, é como se sentir no meio de um oceano sem ter para onde remar. E mais uma vez coloca seu personagem, e milhões de outros Paul’s ao redor do mundo, contra a própria banal existência, e algo que antes parecia ser uma grande conquista, como ser um mero professor e ter sua casa e família construídas, não é mais suficiente, porque as pessoas ao redor do mundo interligadas pela internet, não tem conhecimento de sua existência e “sabedoria”. E essa busca por ser alguém, deixar um legado, ser grande, não é algo exatamente atual dentro da sociedade, mas com o surgimento da internet, a romantização de tudo isso aumentou ainda mais em todas as idades, e ser uma pessoa vivendo contente em seu anonimato de forma simples passou a ser um objetivo pouco convidativo para se sonhar. Porém, ainda que Borgli caminhe por trilhos temáticos interessantes e profundos, acaba se tornando apenas mais um dos cineastas contemporâneos que preterem a brincadeira com o tratamento da linguagem do que o próprio discurso. A sede pela crítica está ali, mas há também muitas sequências de pobreza narrativa na construção de sua decupagem. Diversos truques visuais, sonoros e atmosféricos são utilizados num único intuito de ser “legal” de se assistir, o que nos leva ao público-alvo das críticas; a tendência do crescimento de piadas através do digital e de aplicativos como TikTok, criaram um público cada vez mais efêmero com suas experiências visuais, e isso vai afetando o cinema; são obras cada vez mais picotadas, poucos respiros, muitos truques, e pouca substância, justamente por ser esse o tipo de conteúdo cada vez mais consumido ao redor do mundo.
“O Homem dos Sonhos” não é de todo problemático. É possível encontrar muitos bons momentos que as críticas, ainda que muito aparentes, são eficientes, e o contido Nicolas Cage parece muito comprometido com seu personagem. É uma obra muito promissora em tudo aquilo que busca abordar, há muito o que se construir aqui partindo de suas temáticas. Mas o seu tratamento inconstante e indeciso com o uso dos artifícios para desenvolver seu objetivo é falho. Apesar de ver este primeiro discurso sobre as redes ser a base da construção narrativa aqui, quando o filme segue pelo segundo ponto de interesse, que é a necessidade de ser “alguém” dentro da sociedade, de fazer algo “importante”, e ser conhecido por isto, tem mais a ganhar. Lembra até algo como Bryan Cranston, em seu Walter White de “Breaking Bad”. É um tema mais interessante, ainda que a obra não se aprofunde aqui dramaticamente como poderia. O foco para os superficiais truques narrativos tira o peso dos discursos, e essa oscilação entre por vezes parecer um artigo incisivo sobre o comportamento corrosivo da sociedade moderna através do uso da internet, e por vezes parecer apenas um desabafo de alguém, em boa condição social, que está incomodado com a forma em que a sociedade jovem moderna lida com as suas diferenças e a maneira que decidem lutar por respeito, aos seus trancos e barrancos, tornando o que a obra tem de profundo em algo que beira o medíocre.
*Escritor e crítico de cinema, Breno é autor dos livros; Por Trás de um Sol e Sobre Pássaros e Caracóis. Também analisa filmes recém lançados e divulga grandes autores da sétima arte através de sua página Lanterna Mágica Cinema no instagram. Além de também ser o criador e organizador da premiação amadora de cinema Kurosawa de Ouro. Seu filme do coração é Persona, e respectivamente Ingmar Bergman seu diretor favorito.