O sutil impacto da dramaturgia e a estética
Por Breno Matos*
“O Quarto ao Lado” tem recebido uma recepção bastante calorosa, colecionando diversos prêmios importantes nesse caminho, incluindo o prestigiado Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano. O entusiasmo com a maneira como o cineasta aborda a eutanásia, um tema delicado e polêmico, tem sido um grande ponto de debate, num sentido positivo. Ao mesmo tempo, é inegável que Almodóvar, ao transitar por uma estética mais contida e menos alegórica, molda seu estilo habitual para atender às exigências dramáticas desse novo projeto, principalmente pensando que o mesmo é o seu primeiro em língua inglesa. Contudo, mesmo ao explorar a mortalidade e a escolha de como encarar a própria morte, ele preserva traços de sua assinatura cinematográfica, especialmente na forma como lida com os laços humanos, o desejo e a complexidade emocional. Não obstante, essa mudança de tom se faz perceptível, provocando discussões sobre a evolução de seu estilo, agora mais sóbrio e introspectivo.
A narrativa do filme acompanha duas mulheres, Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton), que se refugiam em uma casa isolada, onde uma delas enfrentará seus últimos dias de vida. Parece bem familiar essa trama, não? Claro, é uma referência óbvia a “Persona” de Ingmar Bergman. A interação entre as duas personagens e os temas existenciais que surgem da convivência tão íntima evocam fortemente o clássico sueco, uma escolha que, para mim, carrega um peso adicional por ser o meu filme favorito. Talvez, inconscientemente, essa forte admiração por Bergman tenha pesado na avaliação de forma automática que fiz de “O Quarto ao Lado”.
Há bastante charme nessa trilha sonora, que cria uma atmosfera de delicadeza sem sobrecarregar as cenas mais dramáticas. A cinematografia é evocativa dos estilos de Douglas Sirk e Todd Haynes, cineastas que, assim como Almodóvar, sabem explorar as nuances do melodrama através de cores saturadas e composições visuais esteticamente cuidadas. A paleta de cores aqui também permanece fiel à marca registrada do cineasta espanhol, com tons vibrantes que contrastam com o peso emocional da narrativa. No entanto, há algumas sequências que, apesar de tecnicamente bem executadas, parecem um tanto isoladas em um conjunto maior que soam frágeis em sua tentativa de explorar temas profundos. É como se a linguagem cinematográfica se destacasse em momentos pontuais, mas não conseguisse sustentar o impacto necessário ao longo da trama.
A encenação das memórias é um bom ponto de partida para começar a falar sobre isso, porque em muitos momentos parecem pertencer a uma obra menos engajado com sua própria força dramática, diluindo-a em que o filme poderia ter. A montagem busca costurar essas lembranças com o presente, mas acaba soando deslocadas e enfraquece o apelo emocional da história, além de serem cenas muito fracas em vários sentidos. E ainda, diálogos escritos com um toque quase teatral soam artificiais em diversos momentos, o que reduz a credibilidade da narrativa e limita a profundidade com que temas como a morte e a eutanásia são tratados. Almodóvar tenta criar uma imersão emocional, mas a sensação de superficialidade em determinados diálogos impede que o filme atinja o mesmo nível de densidade dramática que vemos em suas referências. Enquanto Bergman, em sua obra-prima, se apoiava nas performances hipnóticas de Bibi Andersson e Liv Ullmann, e na curiosa observação de sua câmera evitando lembranças fáceis e fracas visualmente, aqui, a tentativa de recriar essa mesma intensidade parece tropeçar em convenções dramáticas que, ao invés de provocar, afastam. O filme parece caminhar em um terreno incerto, como se o cineasta estivesse dividindo-se entre o desejo de manter sua marca e a necessidade de adaptar-se a um tom mais contido. É um equilíbrio difícil de manter, e o resultado final reflete esse esforço cambaleante.
Se compararmos “O Quarto ao Lado” com filmes anteriores de Almodóvar, como “Fale com Ela” e “Tudo Sobre Minha Mãe” – os meus favoritos de sua filmografia –, que também tratam de temas éticos e delicados, o que se percebe é uma diferença notável na forma como essas questões são abordadas. Nos filmes mais antigos, Almodóvar conseguia equilibrar esses temas com uma atenção meticulosa aos detalhes estéticos e coloridos, sem perder a essência emocional. Aqui, no entanto, algumas sequências parecem desnecessárias, como a em que Martha esquece o remédio e as duas personagens precisam voltar à casa, ou os momentos em que ambas assistem a “Seven Chances” de Buster Keaton. Esses interlúdios enfraquecem o ritmo do filme e revelam uma tentativa de encher o espaço narrativo com referências vazias, ao invés de fortalecer as interações emocionais. Mesmo as referências visuais a Bergman, que são várias e boas, não conseguem esconder a fragilidade dos diálogos e da profundidade emocional que a obra tenta atingir através do seu enredo.
“O Quarto ao Lado” reflete a sensibilidade atual de Almodóvar, que aos 75 anos, parece estar mais consciente da finitude da vida. Sou um grande admirador do trabalho do cineasta, mas, desta vez, o entusiasmo inicial pelo novo filme não se sustentou para mim, o que me deixou um tanto frustrado ao ver as reações positivas dos amigos críticos. Talvez seja o peso das expectativas, talvez a tentativa de transição de estilo ainda precise ser refinada, mas, seja como for, o filme não conseguiu me tocar da maneira que esperava.
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*Escritor e crítico de cinema, Breno é autor dos livros; Por Trás de um Sol e Sobre Pássaros e Caracóis. Também analisa filmes recém lançados e divulga grandes autores da sétima arte através de sua página Lanterna Mágica Cinema no instagram. Além de também ser o criador e organizador da premiação amadora de cinema Kurosawa de Ouro. Seu filme do coração é Persona, e respectivamente Ingmar Bergman seu diretor favorito.