Uma Viagem Pela Gastronomia Através dos Olhos Apaixonados de Tran Anh Hung
Por Breno X. Matos*
Como forma de manifestação dinâmica da cultura humana, a gastronomia ao longo do tempo vem refletindo não apenas os hábitos alimentares, mas também as mudanças sociais, econômicas, políticas e ambientais que moldam nossa sociedade. Desde os primórdios da humanidade, a comida desempenha um papel central na vida das pessoas, não apenas como uma necessidade básica para a sobrevivência, mas também como uma expressão de identidade, tradição e criatividade. No período dos séculos recentes, passou por uma evolução notável, impulsionada por uma série de fatores, incluindo migrações humanas, descobertas científicas, avanços tecnológicos, intercâmbios culturais e mudanças nos padrões de consumo. Quando os seres humanos aprenderam a cultivar e processar alimentos, até os dias atuais, com a ascensão da gastronomia molecular e da culinária de fusão, a comida tem sido constantemente reinventada e reinterpretada em resposta às necessidades e aspirações de cada época.
O paralelo com o cinema é óbvio, mas é interessante notar como a comida, sendo representada dentro da sétima arte, muitas vezes aparecia como um símbolo de conforto e segurança, uma representação da vida doméstica e familiar. Não apenas na era do cinema mudo, mas nas comédias dos anos 1930 e 1940, por exemplo, muitas cenas se passavam em torno da mesa de jantar, onde os personagens se reuniam para compartilhar refeições e conversas, quase como uma forma de conexão, reconciliação, ou até harmonia entre os envolvidos. A comida também era frequentemente usada como um dispositivo narrativo para mostrar a passagem do tempo ou indicar o status social dos personagens. Vejo que, assim como ocorreu nas demais áreas da arte, a gastronomia ganha um status mais elevado, em relação ao seu uso dentro do cinema, quando o ponto de vista passa a ganhar uma carga dramática maior, desenvolvendo um interesse mais no cozinheiro, e em sua obsessão pela perfeição com suas obras, do que suas obras em si. E é então que chegamos na nova obra de Tran Anh Hung.
Ambientado no século 19, “O Sabor da Vida” retrata o relacionamento entre a talentosa cozinheira Eugenie, interpretada por Juliette Binoche, e o famoso gourmet Dodin, interpretado por Benoît Magimel, para quem ela trabalha há 20 anos, e juntos preparam pratos que ganham fama por toda a região. Não é de hoje que Hung é elogiado por sua vontade em tentar capturar uma essência poética e emocional em suas narrativas. Seus filmes muitas vezes exploram temas de memória, identidade, amor e perda, utilizando uma linguagem visual mais comprometida e uma cinematografia mais atraente esteticamente para buscar transmitir as nuances emocionais de suas histórias. Sua marca de sensibilidade para com os detalhes e sua atenção aos elementos visuais e sonoros acabam por criar uma experiência cinematográfica imersiva por quem se interesse por detalhes poéticos na decupagem e estrutura. Características muito visíveis em “O Perfume da Papaya Verde”, que é a sua obra mais lembrada pelos cinéfilos e críticos; uma meditação profundamente emotiva sobre a passagem do tempo, a memória e a efemeridade da vida. E aqui não é diferente. Hung resgata o aspecto atmosférico positivo sobre a gastronomia dentro do cinema com a relação em que seus personagens desenvolvem com ela, e a partir dela, mas também não foge de um interesse com a maneira em que um artista lida com suas obras, emocionalmente e intelectualmente.
O forte de “O Sabor da Vida” está nesse caminho que Hung encontra de elaborar o onírico da beleza gastronômica através de uma decupagem e linguagem visual sensível e singela. Isso o possibilita construir uma relação muito interessante entre os ótimos Magimel-Binoche, que é solidificada não apenas pelas trocas de gentileza e flertes, mas também nas pequenas nuances nas interpretações dos atores. Claro que uma boa decupagem ajuda nisso, mas química é algo muito difícil de se conseguir apenas com esforços intelectuais, para não dizer impossível, é necessário um talento no trabalho emotivo que facilita esse meio. E é um trabalho muito cuidadoso com o seu cenário, cada detalhe do ambiente, suas luzes e objetos são pensados na combinação mais harmônica possível para gerar as sensações atmosféricas desejadas. É quase como se a obra fizesse uma reflexão análoga sobre como um filme que é parcialmente sobre comida pode ser texturalmente apreciado e degustado como um prato belamente montado.
Como nem tudo que é belo significa qualidade, é possível perceber que quando a obra foca em suas tramas e enredo, principalmente quando parte para algo como Jacques Rivette fez em “A Bela Intrigante”, em que o desenvolvimento sobre o autor e sua obra, lutando contra os próprios demônios, o filme decaia de qualidade. Não é algo brusco, ou gritante, mas é perceptível que a preocupação em acolher um espectro belo é maior do que no tratamento de sua profundidade ao que se diz respeito a psique humana, relacionado ao artista. O romance que paira a obra ganha seu peso e foco com o decorrer da narrativa, e talvez seja aí que Hung tenha se deixado levar pela previsibilidade do roteiro, ainda que tudo isto não leve a obra a uma visão negativa, ou sequer algo próximo disso. O potencial que o cineasta vietnamita tinha em mãos poderia lhe render uma obra memorável, mas dentro daquilo que se propôs a abordar e trabalhar, ainda conseguiu entregar um filme delicado, simples, visualmente bonito, e muito sensível.
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*Escritor e crítico de cinema, Breno é autor dos livros; Por Trás de um Sol e Sobre Pássaros e Caracóis. Também analisa filmes recém lançados e divulga grandes autores da sétima arte através de sua página Lanterna Mágica Cinema no instagram. Além de também ser o criador e organizador da premiação amadora de cinema Kurosawa de Ouro. Seu filme do coração é Persona, e respectivamente Ingmar Bergman seu diretor favorito.