O conflituoso ano de 1979 em X – A Marca da Morte

Por Sthefaniy Henriques*

Quando X, produção do experiente diretor de terror TI West estreou no festival South by Southwest (SXSW), os críticos que puderam apreciá-lo ainda em sessões do festival se dividiram entre alguns grupos: houve aqueles que colocavam X como uma homenagem ao cinema de horror dos anos de 1970, ocorreu que alguns visaram a produção como uma subversão dos slashers da época e até existiu-se aqueles que compararam o filme ao clássico O Massacre da Serra Elétrica (1974), este último que grandes mídias como a The Guardian, Variety e Rolling Stones defenderam em suas impressões sobre a obra.

O tratamento dado a X pela grande mídia voltada a cobertura do cinema, a princípio, limitou a produção a ser pensada como um filme no qual precisamos olhar para o passado e eles não estavam errados sobre isso. Por mais que justifiquem tal discurso para direcionar uma análise sobre o que era o slasher, eu me aproveito desse olhar para o pretérito para propor algo diferente: mais que vislumbrar o slasher, precisamos observar o ano em que se passa X, temos que nos atentar a 1979. 

De antemão, aos caros leitores que se interessam pela construção do slasher, devo informar que eu já escrevi um pouco sobre as características do subgênero articulando-o em minha análise sobre A Hora do Pesadelo (1984) que se encontra disponível no site.

1979: O início de grandes disputas

 O historiador estadunidense Brooks Flippen, em seu livro ‘‘Jimmy Carter, The Politics of Family and The Rise of The Religious Right’’ define o ano de 1979 de um modo interessante ao caracteriza-lo como tumultuado, traçando, inclusive, um paralelo com o início da década que ele também define da mesma maneira. Em sua visão, A Guerra do Vietnã e a contracultura, acontecimentos com consequências ainda visíveis no início da década de 1970, havia dado lugar a um estagflação econômica e uma emergente direita religiosa, esta última que causaria nos últimos meses da década um tsunami político.

É exatamente nesse contexto que Wayne Gilroy (Martin Henderson), decide financiar um novo projeto de filme pornográfico que promete ser inovador para o mercado. Wayne, com seus atores profissionais e uma equipe técnica inexperiente, opta por cruzar o estado do Texas para gravar The Farmes’ Daughters em uma locação real. O filme será filmado em uma fazenda arruinada pelo tempo localizada no interior texano, cujo proprietários são um casal de idosos, Howard (Stephen Ure) e Pearl (Mia Goth).

Vivendo isolados naquele lugar, o casal de idosos, em uma primeira análise, significam o que era a antiga américa fazendo contraposição a Wayne e sua trupe, hóspedes que representam faces diversificadas da nova américa, pessoas de diferentes idades, mas unidas pelo impacto das transformações deixadas/vividas pelo movimento da contracultura.

Começar essa analise partindo desse ponto de encontro entre o longevo e o moderno tornou-se importante, afinal, é precisamente dessa forma em que os Estados Unidos começaram a se dividir com veemência, causando, por fim, o tsunami político defendido por Brooks Flippen.

Reavendo uma informação primordial: Em 1979, a Direita Cristã manifestou-se, todavia, ela não se organizou sem nenhum estimulo precedente. Longe disso, a Direita Cristã surgiu para combater conjuntos que causavam a decadência moral e espiritual da nação, conjuntos que formam a espinha dorsal da produção de TI West e fazem de X uma obra perfeita para análise do cenário social estadunidense e das disputas em 1979.

O Feminismo

 É impossível tratar das personagens femininas sem desconsiderar a ‘‘segunda onda’’ do movimento feminista, movimento que, entre 1960 e 1980, foi voltado, principalmente, a luta pela emancipação sexual, reprodutiva e pela igualdade laboral. A luta feminista não estava completamente marginalizada nos Estados Unidos, o presidente do período, Jimmy Carter, se demonstrava sorridente pela causa, pressionando, ainda em 1979, a emenda Equal Rights Amendtment (ERA), proposta que buscava garantir direitos iguais a todos os cidadãos americanos, independente do sexo.

Assim como existia um apoio por parte da população e do próprio presidente, o movimento anti-feminista também aumentava à medida que a Direita Cristã crescia. Como argumenta o pastor Jerry Falwell em um dos capítulos de seu livro ‘‘Listen, América!’’, publicado no segundo semestre de 1980, o movimento feminista e o movimento pela igualdade de direitos eram, em contraposição, prejudicial a mulher, pois, de acordo com Falwell, a emenda retiraria os muitos direitos especiais que as mulheres desfrutavam, direitos dados por Deus.

Algo que chama atenção em seu capítulo ‘‘The Feminist Movement’’, entretanto, está logo no primeiro parágrafo. Falwell afirma que há as feministas radicais e um grupo minoritário de feministas com problemas espirituais. O pastor chega a defender que existiam mulheres que se envolveram com o movimento, pois eram mal informadas ou aderiram a causa devido a lacuna deixada pela ausência de um bom homem/marido para guia-las.

Essa contraposição extrema nos ajuda a pensar as personagens femininas de X.  Na van com destino a fazenda, somos apresentados a três delas: duas atrizes, Bobby-Lynne (Brittany Snow), Maxine (Mia Goth) e a jovem técnica de som Lorraine (Jenna Ortega), a personagem que mais interessa diante do meu recorte.

Lorraine é convencida por seu namorado RJ (Owen Campbell) a ajuda-lo no projeto. Sob o conservador estado do Texas, com suas vestimentas formais e crucifixo no peito, ela julga silenciosamente durante toda viagem os atores e também o produtor do filme. Lorraine, vencida pela situação, ajuda a gravar o filme, mas ao final das gravações, quando escuta atentamente Bobby-Lynne falar sobre aproveitar a juventude e a banalidade do sexo, decide participar da produção, desta vez como atriz.

A mudança radical no comportamento de Lorraine é uma representação de um campo de disputas que pode, inclusive, ser interpretada tanto por uma vertente progressista, quanto pela conservadora cristã.

Em uma leitura liberal do caso, Lorraine, ao libertar-se sexualmente, se solta das amarradas de uma sociedade atrelada a comportamentos e valores ultrapassados, superando, inclusive, o que a historiadora Joana Pedro em seu texto ‘‘Corpo, Prazer e Trabalho’’ aponta como o pensamento conservador da época: a noção de que a mulher ‘‘respeitável’’ não sente desejo e nem prazer sexual, pois seu foco era destinado a maternidade. 

Se pensarmos com a perspectiva cristã, a própria visão de Jerry Falwell citada anteriormente pode apresentar explicações. Com tal raciocínio, existe também um campo favorável para afirmar que Lorraine foi seduzida pela falsa mensagem de igualdade e liberdade, no qual a fé da jovem não foi o suficiente em meio a tantas influencias mundanas, incluindo um grande acréscimo: O seu namorado, quem deveria cuidar e assegurar uma vida alinhada aos princípios bíblicos, a atraiu para aquele lugar e pouco fez para protege-la. 

A Pornografia

 Assim como vertentes associadas ao feminismo, a pornografia foi um tópico que começou a se tornar quente na sociedade estadunidense.  

No início da década de 1970, filmes pornográficos respondiam a uma nova forma de lucrar com o sexo. Os historiadores John D’Emilio e Estelle Freedman no livro ‘‘Intimate Matters: A History Of Sexuality In America’’ apontam que os filmes deixaram a clandestinidade, chegando a exibições em cinemas, drive’ins e shoppings de todo país com a classificação de triplo ‘‘X’’. Um consumo público, entretanto, ainda era cercado por tabus, o que fez o mercado pornográfico se renovar e retornar ao âmbito doméstico. Em 1979, o mercado de videocassetes começou a se popularizar, permitindo que os filmes para consumo em casa impulsionassem um negócio com vasto potencial de expansão.

Em X, após o encerramento das gravações de The Farmes’ Daughters, Wayne se demonstra um visionário ao falar sobre sua intenção com a produção. O texano tem certeza que o mercado de vídeos caseiros vai explodir e apresenta um bom argumento para isso: a privacidade. Em suas próprias palavras ‘‘As pessoas poderão assistir ao que quiserem, na privacidade de suas casas, livres de julgamento. Seremos os primeiros a proporcionar isso. O pornô não será mais só para os pervertidos’’

Entre os vários acertos no panorama de Wayne, ele também estava correto sobre a pornografia deixar de ser apenas para ‘‘pervertidos’’. O consumo caseiro feito por casais ou solteiros ‘‘comuns’’ se tornou um problema, tanto para a ala progressista da sociedade, quanto para a conservadora. E eles tinham lá seus motivos para preocupação, afinal, no primeiro ano da década de 1980, o mercado pornográfico já havia movido bilhões de dólares, o que acabou tornando ainda mais incisiva a luta feminista e religiosa acerca dos filmes. Na vertente feminista, as ativistas associavam os filmes ao incentivo de violência contra a mulher, ‘‘Pornografia é a teoria, estupro é a prática’’ disse a ativista Robin Morgan.

Os conservadores, entretanto, ao lidar com a pornografia, lançaram uma cruzada puritana, associando a pornografia a um dos maus da sociedade americana, em conjunto ao aborto, feminismo e a homossexualidade. Jerry Falwell, pastor reflexo do movimento conservador, chegou a afirmar em ‘‘The Feminist Movement’’ que Hugh Helfner, fundador da revista Playboy, financiava o ERA, sugerindo que as feministas não protestavam contra os conteúdos ‘‘que degradam as mulheres de maneira pornográfica, pervertida ou sádica’’ por serem cumplices do mal moral que atingia o país. 

O Televangelismo

 Se feminismo e pornografia eram dois elementos que estava ajudando a levar o país a ruina, quem deveria alertar aos americanos sobre isso? Ou melhor, de qual forma a mensagem chegaria? Eu me arrisco a dizer que essa resposta é bem simples, considerando que houve um ‘‘boom’’ dos televisores em lares estadunidenses em 1960, a televisão foi um dos principais impulsionadores da mensagem.

Pastores, cansados de disputar audiência entre eles nas rádios, trocaram a radiodifusão pelas ondas eletromagnéticas da televisão. O televangelismo, a partir dessa migração, tornou-se uma febre nos Estados Unidos na divulgação do cristianismo que, poucos anos depois, ganhou tons políticos. Todavia, na década de 1970 e, especificamente em 1979, o envolvimento entre a direita cristã e os pastores não era tão alarmante. Como aponta o historiador Jeffrey Hadden em seu artigo ‘‘The Rise and Fall of American Televangelism’’, as manifestações e interesses políticos se mesclavam a princípios bíblicos, disfarçando a possível existência de uma agenda política. 

Se Hadden aponta que o discurso político aparece envolvido a princípios da bíblia, é exatamente dessa forma que o televangelismo se faz presente em X. Em meio ao confronto final entre Maxine e Pearl, TI West captura tal embate com planos que privilegiam o conteúdo que era transmitido na televisão: um pastor em pregação. O discurso, até então genérico sobre aceitar Jesus e sua intervenção divina, ganha tons mais indicativos quando o pastor divulga a seguinte mensagem: ‘‘Espero que, através do meu testemunho, outros encontrem a luz. (…) Minha linda filhinha, Maxine, atraída a uma vida de pecados pelos mesmos depravados sobre os quais alertamos aqui diariamente. De nossos amorosos lares para mãos de demônios’’

O seguinte trecho ‘‘atraída a uma vida de pecados pelos mesmos depravados sobre os quais alertamos aqui diariamente’’ indica que os depravados são as novas gerações de americanos, aqueles que ainda no inicio do texto eu caracterizei como faces de uma nova américa após as transformações de 1960.  Nomear tais grupos de depravados e indicar que a vida de Maxine foi destruída por essas influencias, torna tudo o que vimos ao acompanhar os bastidores de The Farmes’ Daughters – como liberdade sexual, a concepção sobre sexo, juventude e entre outros temas – algo a ser enfrentado e eliminado pela Direita Cristã.   

Desse modo, ao terminar o conflito com tal discurso, TI West não é apenas certeiro ao sugerir que as ‘‘ideologias’’ dos ‘‘mundanos’’ como Maxine está causando um mal estar no país, West também indica que essa tal perspectiva sobre uma América envolta em pecados fará os Estados Unidos conservador novamente, possuindo os líderes religiosos como guias para a purificação da nação.

Conclusão e o que se esperar de MaXXXine (2023)

X não é um filme que debate todos os conflitos presentes no ano de 1979 – Por mais que Pearl seja bissexual, o filme não se aprofunda na questão e também não há menções sobre aborto –, mas é uma produção louvável em demonstrar os embates acerca da liberdade sexual feminina, o entusiasmo em relação a pornografia para consumo doméstico e a utilidade política dos programas religiosos, tópicos presentes na sociedade estadunidense e que estavam prontos para explodir publicamente no ano seguinte.

MaXXXine, o filme que fecha a trilogia de X, muito provavelmente se passará no período de estabelecimento do fundamentalismo religioso concomitante ao crescimento estrondeante da indústria pornográfica. Se TI West não surpreender e mudar o foco da sua produção – o que eu acho difícil devido ao Triplo ‘‘X’’ no título – MaXXXine tem tudo para render outro bom assunto por aqui.

O filme está disponível no catálogo do Prime Vídeo.

Confira o bate papo sobre a matéria no vídeo a baixo:

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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