La Chimera (Crítica)

Um vislumbre do reflexo mágico neorrealista no cinema de rohrwacher

Por Breno Matos*

Surgindo no pós-Segunda Guerra, o neorrealismo marcou toda uma geração italiana que buscava inovação cinematográfica. Na literatura, já tínhamos o realismo mágico como uma porta de entrada para autores que, mais adiante, realizariam obras mesclando ambos os gêneros, dando início a uma safra, um tanto dispersa, do neorrealismo mágico. Eles capturam a atmosfera sombria e desesperançada de uma época, sociedade ou ambientação, enquanto introduzem elementos de magia, mitologia ou simbolismo para amplificar as emoções e os dilemas enfrentados pelos personagens. Geralmente, nos levando a personagens com noções puras e ingênuas enfrentando grandes males de uma civilização, ou do mundo em si. Desde os mais clássicos, pode-se encontrar Federico Fellini ou Luchino Visconti, muito elogiados até hoje. No entanto, é interessante notar que, com o passar do tempo e das gerações, apesar dos elogios e admirações para tais elementos e cineastas, foi-se tornando algo saudosista; só era bom na época. Isso torna muito difícil para obras como as de Alice Rohrwacher alcançar o público mais engajado com os modelos do cinema atual.

Na Toscana, na Itália, na década de 1980, Arthur, nosso protagonista, é um arqueólogo que ganha a vida como ladrão de túmulos, subtraindo relíquias para vendê-las no mercado de arte. Alice, claramente enraizada no cinema de seu país, revela influências abundantes em sua obra; porém, é nítido seu apreço pela valorização dos próprios sentidos. Por meio de uma decupagem poética e uma construção linguística de atmosfera quase lírica, a cineasta aborda temas como inocência e apego a artefatos, seja históricos ou sentimentais, mesmo que metafóricos. Além de falar muito sobre si mesma através desses elementos que caem como uma luva para o seu cinema, tornando-o genuíno, ainda que excessivamente apaixonada por suas próprias escolhas, tanto narrativas quanto simbólicas.

De fato, é admirável o cuidado meticuloso que a cineasta dispensa à construção de suas cenas, desde as mais banais até as mais oníricas. Esse é o seu maior ponto forte em relação ao cinema, expondo sua fraqueza em relação às escolhas de artifícios. Ela sente cada detalhe exposto, trabalha cada sutil leveza da câmera, a captação das luzes para com seus personagens, ambientes, sua mise-em-scène, e até a lente escolhida é pensada para apoiar essa sensação de pureza e poesia visual, embora de forma mais sutil do que em obras anteriores suas. Quase independente da cena que se passa em tela, é possível enxergar cores e aspectos que lembram uma vida de campo tranquila, onde não há grandes exageros físicos, verbais, ou de eventos. Isso torna suas obras, mesmo com detratores para outros aspectos que ela usa, muito cativantes e simpáticas, graças ao seu cuidado com cenários, figurinos, cores, períodos, sonoridade, diálogos, em suma; sua decupagem.

Gosto da simplicidade do enredo e das tramas. É verdade que abre mais possibilidades de discursos, temas e conteúdos que carecem de desenvolvimento profundo, mas nunca se torna alvo de críticas pesadas pelo modelo linguístico poético que utiliza. É possível enxergar uma tentativa de exemplificar uma anti-espetacularização dos anseios humanos como se não fosse algo comum na sociedade. Ainda que isso não seja negativo na arte, é um ponto de vista que merece destaque. E claro, Arthur, nosso protagonista, com suas angústias sobre seu passado e sua ligação com a arqueologia, oferece à cineasta espaço para trabalhar essa simbologia entre o personagem e suas amarras. Ao mesmo tempo, utiliza a Itália como personagem, incorporando um modelo de simplicidade e pureza numa sociedade corrompida, mas que está mais próximo de uma ferida não cicatrizada do que uma raiz originalmente má, algo que vai contagiando nosso protagonista. Aliás, excelente atuação da brasileira Carol Duarte, que já havia estado ótima em “A Vida Invisível”.

Ainda que tudo isso pareça apenas uma admiração da autora para com os estilos desses elementos linguísticos e cuidado com a decupagem, ao olhar para o retrospecto de sua recente filmografia, é curioso que sempre pareça que a autora fale de si mesma compondo suas histórias e personagens. Algo que já se notava em “Lázzaro Felice” e “Le Quattro Strade”, com personagens com características muito similares, conflitos e paixões por coisas um tanto em comum, e geralmente em personagens femininas, e mesmo em Lázzaro, que era um garoto, possuía fortes traços femininos na aparência e trejeito. Pode ser uma grande coincidência, mas é difícil imaginar que as obras de Rohrwacher não sejam um espelho para si mesma, seus apreços, receios e crenças. Não seria a primeira a fazer tal coisa na arte, e nem será a última a tentar. Acho que a cena que mais evidencia essa luta interna da ingenuidade pessoal contra um mundo frio é o desenho dos pombos na parede dos túmulos, congelando no momento em que são descobertos.

“La Chimera” competiu pelo principal prêmio do Festival de Cannes, a cobiçada Palma de Ouro, mas não venceu. Embora tenha ganho alguns prêmios ao redor do mundo, inclusive no próprio Brasil, com o Prêmio do Público de Melhor Filme de Ficção Estrangeira na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a obra até o momento recebe uma recepção de média a alta empolgação por parte da crítica, tendo pouco alcance no circuito mainstream. Ainda que não seja uma cineasta tão valorizada (ainda), acredito que é a melhor hoje em dia a trabalhar esse neorrealismo mágico no cinema entre todos os italianos que tentam, incluindo o superestimado Paolo Sorrentino.

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*Escritor e crítico de cinema, Breno é autor dos livros; Por Trás de um Sol e Sobre Pássaros e Caracóis. Também analisa filmes recém lançados e divulga grandes autores da sétima arte através de sua página Lanterna Mágica Cinema no instagram. Além de também ser o criador e organizador da premiação amadora de cinema Kurosawa de Ouro. Seu filme do coração é Persona, e respectivamente Ingmar Bergman seu diretor favorito.

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