A História Oficial e o diálogo com a grande massa

Por Sthefaniy Henriques*

A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer, já dizia o grande Peter Burke. Quando mencionamos ditadura e as diversas violações dos direitos humanos que ocorreram durante os regimes, adentramos em uma grande zona de conflito e, sobretudo, de resistência, de opor-se, de vincular notícias e conhecimento sobre os impactos – primordialmente negativos – das ditaduras no Cone Sul. Na Argentina, especificamente, a memória e a resistência do não esquecimento do regime se expressam de maneiras distintas, não habituados aos olhares brasileiros quando o tema é abordado. O tema central do filme é um dos diversos exemplos que podem ser dados sobre a luta pela memória, pela continuidade de uma ferida que precisa ser exposta.

Desde 1977, mulheres promovem passeadas na Praça de Maio, em Buenos Aires, em frente à Casa Rosada – sede da presidência da Argentina – para buscar informações de parentes desaparecidos durante o regime militar, principalmente filhos e netos. Desses protestos, nasceram organizações como Mães da Praça de Maio e Avós da Praça de Maio, esta última que será abordada e dará luz a causa no filme de Luis Puenzo.

Com temática que dá ênfase nos desaparecidos, principalmente crianças, A História Oficial é o primeiro filme latino-americano a ganhar o Oscar na categoria de filme internacional, horando a Argentina como o primeiro país a conseguir tal feito. Além do Oscar, o filme também agregou a sua prateleira de prémios o Globo de Ouro de Melhor Filme Internacional e o prêmio de Cannes de Melhor Atriz, conquistado por Norma Aleandro.

O filme se passa em 1983, coincidindo com o início das gravações do filme que vão durar até 1985 devido a continuidade de algumas opressões. No último ano de ditadura, a câmera de Puenzo se concentra em uma família argentina de classe média alta, de modo próprio em Alicia Maquet, uma professora rígida de história que, com o retorno de sua amiga Ana do exílio, começa a questionar se Gaby, sua filha adotiva, é um bebê da ditadura, ou seja, uma criança retirada de sua mãe biológica pelos militares para venda.

A produção é riquíssima e uma fonte histórica primorosa para as pesquisas sobre a Ditadura na Argentina, afinal, enquanto era gravado, não existia o conhecimento de hoje em dia sobre o período, o próprio diretor e a roteirista basearam-se unicamente em suas observações. Deste ponto, nos centraremos nos fundamentos primordiais que compõem A História Oficial e como a luta pela memória de Puenzo atingiu a grande massa.

Contexto político-social argentino

A Argentina tem um longo histórico de militares no poder. Entretanto, a ditadura militar inicia-se em 1976 e perdura até o ano de 1983 quando a desintegração de algumas esferas de poder faz a ditadura cair. Segundo Hugo Quiroga (2006) tais fatores estavam intimamente ligados: fracasso da política econômica, desistência interna das forças armadas e a derrocada na Guerra das Malvinas levaram o aumento de pressão interna e da pressão externa. Junto ao descontentamento popular, o presidente estadunidense Jimmy Carter (1978-1981), democrata conhecido pelo incentivo a democracia em outros países e defensor dos direitos humanos observava a situação da Argentina com certa preocupação.

A Argentina é marcada pelo regime de Segurança Nacional, que, segundo Serra Padrós (2005) pode ser dividida em termos econômicos e em termos políticos. Na economia, houve um grande afastamento da política de Peron da valorização nacional, a econômica se internacionaliza e o Estado ‘‘colhe os frutos’’ de tal mudança, como o crescimento de dívidas externas, uma concentração de renda e o aumento da exploração da classe trabalhadora. Em termos políticos, o objetivo era destruir organizações revolucionárias, tornar setores populares antipolítico ou associados a ideologia dos militares, além da associação com os EUA. Ainda na política, ocorrerá a manifestação da repressão, silenciosa, oculta, mas existente. Falar sobre ditadura na Argentina é, acima de tudo, falar sobre uma repressão que raramente se via a luz do dia e, quando se via, logo era ‘‘esquecida’’. Então, como falar sobre a repressão para públicos que talvez não queiram ouvir sobre?

O político no formato novelão.

Em entrevista para o jornal Nodal, Puenzo é muito claro na proposta que ele tinha para a História Oficial. O filme era para ser um filme político, mas que não só seduzisse para os cinemas apenas os militantes da época, como o próprio pontua, seria como morder a própria cauda, atender e falar para um público já consciente sobre. Dessa forma, Puenzo optou pelo melodrama (o famoso novelão) dentro de um formato norte-americano que era um gênero muito apreciado pelo público argentino no período.

Como Puenzo escolheu Kramer vs Kramer (1979) e Gente como A Gente (1980) como inspiração, A História Oficial é um filme político, que tem uma posição que aponta culpados pela ditadura, que escancara cumplicies, mas que não coloca uma grande figura militante no centro da narrativa, pelo contrário, acompanhamos uma mãe de classe média descobrindo os horrores do regime com uma motivação materna, uma motivação humana. Isso certamente aproxima mais o público das salas de cinema.

A abordagem de centrar uma mulher não envolvida com a militância é sucessiva, mas não devemos esquecer que o tom político ainda está no filme, está principalmente na figura de Alicia. Se pudemos rapidamente descrever alguns de seus adjetivos, Alicia é uma mulher de classe média, professora de história e mãe. Essas três qualidades não estão presentes na produção de forma gratuita e são fatores primordiais para compreender o que foi proposto na discussão sobre o filme: o dialogo com a grande massa e o não apagamento da memória.

A classe média de ignorantes e os indiferentes.

A presença da classe média será manifestada na produção de duas formas: a primeira na forma de Alicia, a segunda na forma de seu marido. Antes de falarmos sobre nossa grande protagonista, é melhor analisarmos o seu cônjuge. Em uma conversa de família, o pai de Ricardo (marido de Alicia) está infeliz com o mesmo, pois, seguindo o senhor, o filho só pensava em dólares americanos. Ricardo certamente faz parte da classe média que se beneficiou e recebeu com grande alívio o golpe de 1976, este golpe que foi responsável pelas reformas liberais que favoreceu o empresariado local. O diretor formula na figura de Ricardo uma pessoa que conhecia o que realmente estava acontecendo na Argentina, as repressões, as mortes, os sequestros, mas coloca o personagem no lugar de um cego pelos dólares, disposto a vender as almas do seu país e se silenciar para tal beneficiamento. Tal escolha fica mais nítida quando o pai de Ricardo dispara a seguinte frase: ‘‘Todo o país desmoronou, só os bastardos, os ladrões, os cúmplices e meu filho mais velho prosperaram’’.  

Em contrapartida, na figura de sua esposa, temos uma classe-média que realmente está isenta do conhecimento, alienada as transformações positivas que o país recebeu durante o período da ditadura e encarando com estranhamento as reivindicações e protestos dos atingidos negativamente pelo regime. Alicia está tão ignorante em relação a atualidade da Argentina que foi necessário que outra mulher de classe média (que sofreu com os crimes da ditadura), a fizesse começar a questionar o regime, mesmo que sua reação inicial seja negar tudo que ouviu.

A função do professor de história e sua posição enquanto vivenciador dos fatos

Alicia é uma professora de história rígida que aos poucos começa a entender que a matéria que ela leciona é, acima de tudo, política e que precisa ser debatida. Em sua primeira aula, sobre a Revolução de Maio (1810), Alicia ainda está presa a ‘‘história oficial’’. A professora em sua apresentação é aquela que diz ‘‘nenhum povo pode sobreviver sem memória e a história é a memória do povo’’, mas, em seguida, cala seus alunos quando os mesmos questionam e problematizam os conteúdos contidos nos documentos que Alicia apoia-se. Alicia encontrará em sua classe a nova juventude argentina, representada por Puenzo como questionadores e destemidos, conscientes dos acontecimentos da ditadura, que não temem em afirmar diante da professora que a história que a mesma leciona foi escrita por assassinos. 

Como os adjetivos de Alicia estão estreitamente ligados, a professora, diante do aprofundamento em relação a origem de sua filha, também repensa e questiona aquilo que se propôs a ensinar. Assim como seus alunos, Alicia reexamina a história de seu país e isso, é claro, transforma sua postura. A professora perde o tom autoritário e se demonstra apta a valorização da memória do povo, principalmente em relação aos fatos históricos que a mesma está presenciando.

A maternidade como via para a comoção e empatia.

O último ponto para a redenção de Alicia através da tomada de consciência está na maternidade, o maior aspecto de humanidade na produção de Puenzo. Alicia é uma mãe que, em busca da verdade, inicia uma longa jornada para saber quem são os pais biológicos de Gaby. Diante de tamanha trajetória, passando por hospitais, cartórios e outras instituições públicas, o fervor da maternidade ganha destaque quando Alicia faz seus primeiros contatos com outras mulheres que estão em busca de seus filhos e netos.

Chegar cada vez mais perto da origem de sua filha faz a professora se rebelar, reconhecendo os silenciosos extermínios durante o regime que, inclusive, acontecerá com os pais de sua filha. O filme de Puenzo promove sequências sensíveis e densas quando esse tópico de crianças desaparecidas é mencionado. A cena do quarto de Gaby sendo invadido por outros meninos da mesma idade faz uma alusão direta a como funcionava os ataques dos militares. A mensagem é muito clara sendo representada dessa forma, Puenzo não nos poupa da verdade e centra o desaparecimento de filhos, crianças e a incessável busca das mães como o coração da produção. O filme aponta possíveis culpados (os militares e seus cúmplices, a classe média e a igreja), aborda o papel primordial da história, mas seu cerne está na maternidade, em filhos que independente da ideologia política e classe social foram tirados de suas mães e crianças que foram separadas de seus pais.

A empatia e a comoção diante dos horrores da ditadura e de um trauma são objetos para consciência de momento e de futuras gerações. Seguindo esse ponto de vista que quem vos escreve fielmente acredita, A História Oficial comunica-se com um grande público e ao mesmo tempo conscientiza acerca da ditadura e ajuda na construção de uma memória que não se esquece e não pode se calar diante dos horrores. Para finalizar, é possível mencionar o fruto dessa produção, A História Oficial gerou discussões e expandiu o conhecimento sobre a luta das Avós de Maio, nesse processo, mais crianças foram identificadas.

Disponível na Netflix.

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e aspirante a crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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