CINEMA LGBTQIA+: POR QUE FINAIS FELIZES SÃO TÃO NECESSÁRIOS?

Atenção! O conteúdo do texto conta com spoilers de diversas produções. Além dos spoilers, alguns tópicos trabalhados podem causar gatilhos.

Por Sthefaniy Henriques*

 O cinema nos abre possibilidades para problematizamos muitas coisas, assim como normalizamos completamente outras. Os filmes de temática LGBTQIA+ e personagens queer (e aqui eu utilizo a palavra como um termo guarda-chuva) estão no meio disso. Por um lado, há muito o que ser problematizado, mas, simultaneamente, há um conforto em prosseguir com representações que ligam a identidade queer à tragédia ou a negatividade. O efeito do lado mais forte (o conforto persistente com representações sofridas) vem, historicamente, criando signos que nos atinge de maneira bastante subjetiva. Dentre tais signos, aquele nos quais entendermos personagens queer como criados para serem punidos ou silenciados.

O tropo Bury Your Gays é algo que, segundo Haley Hulan, ainda está assombrando a mídia no século XXI. Por mais que esse tropo possa ser desconhecido por nome a um público mais amplo, seu modus operandi é bem conhecido. De acordo com Hulan, o padrão de uso desse tropo afirma que, em qualquer trabalho narrativo, onde se existe um casal queer, um dos amantes deve morrer ou o romance não pode ter um desfecho feliz. Como Bury Your Gays surge ainda no século XIX, produções anteriores ao ano de 1974 (ano da retirada da homossexualidade da lista de doenças mentais), deixam ainda mais visível esse modo de atuação. Um dos meus filmes favoritos, por exemplo, é o perfeito ideal do tropo.

Infâmia (1961) de William Wyler é uma produção inspirada em uma peça de Lilian Hellman que chegou a Broadway em 1934. No filme, Karen Wright (Audrey Hepburn) e Martha Dobie (Shirley MacLaine) administram juntas um internato, até que uma aluna problemática, ao ser repreendida pelas suas más ações, inicia um boato que ambas professoras tem um romance. Próximo do final do filme, Martha assume que tem sentimentos por Karen. Karen não deixa claro que é recíproco. Após a confissão, Martha comete suicídio e Karen, depois de enterrar a amiga, termina o filme sorrindo como se estivesse curada. Infâmia exibe uma forte correlação entre confissão e morte de um amante, enquanto o outro, ‘‘converte-se’’ a heterossexual novamente, como se o experimento ou lapso de insanidade fosse encerado. Além de, é claro, o vilão ser a orientação sexual de Martha, não a homofobia. 

Suicídio, Vilania, Morte e Sofrimento

Infâmia demonstra uma longa e interminável continuidade do suicídio como desfecho para um personagem queer. Vejamos, quase 50 anos depois da produção de Wyler, tivemos Orações para Bobby (2009), filme que até hoje é referencia no cinema LGBTQIA+. O suicídio como destino, entretanto, é muito mais comum em séries de TV populares para adolescente como Glee, Grey’s Anatomy, Diários de um Vampiro e The Wilds

A vilania é outro aspecto que personagens queer costumam possuir. No meu filme favorito de Alfred Hitchcock, Rebecca (1940), a Senhora Danvers (Judith Anderson) é uma vilã mal humorada que nutre uma antiga paixão pela ex Senhora de Winter. Mais tarde, o mesmo Hitckcook, em Festim Diabólico (1948), colocará um casal gay para matar um colega de universidade simplesmente para comprovar que podem cometer um crime perfeito. Décadas depois, a vilania prossegue, veja Buffalo Bill em O Silêncio dos Inocentes (1991), Chaterine Tramell em Instinto Selvagem (1992), Ray em Todo Mundo em Pânico (2000), Raoul Silva em 007:Skyfall (2012).

As mortes também são outro aspecto da existência LGBTQIA+ no cinema. Tomando apenas como exemplo indicados ao Oscar, teremos a inesquecível morte de Jack Twist em O Segredo da Montanha Brokeback (2005), Brandon Tenna em Meninos Não Choram (1999), Lili Elbe em A Garota Dinamarquesa (2015) e Rayon em Clube de Compras Dallas (2013).

Por fim, o sofrimento, talvez o argumento mais explorado para encaixar personagens e histórias. Podemos ir de dramas como Moonlight (2016) com Chiron crescendo enquanto um homem gay e negro no subúrbio de Miami a comédias como Pequena Miss Sunshine (2006) com Frank, um homem gay que recentemente é liberado do hospital após tentativa de suicídio. A lista pode facilmente continuar com o herói Alan Turing que precisa esconder sua sexualidade em Jogo da Imitação (2014), uma mãe que tem que escolher entre a mulher que ama e seu filho em Carol (2015) e uma mulher trans que deve enfrentar a transfobia da família de seu ex-companheiro em Uma Mulher Fantástica (2015). Os exemplos podem ser múltiplos, pois o sofrimento de personagens queer no cinema é generalizado.

Por que a virada nas produções se faz tão necessária?

É compreensível que boa parte dessas obras que matam seus personagens ou dão um final infeliz a eles buscam se aproximar da realidade. A morte de Tallie em The World To Come (2020) gerada pela descoberta sexual, a resistência do policial Daniel ao se assumir como bissexual em Deserto Particular (2021) e a amargura causada pela solidão de Phill Burbank em Ataque dos Cães (2021) reproduzem algo que a vivência queer carrega, assim como estigmas, marginalização e outras diversas adversidades enfrentadas pela população. Que fique claro, eu não estou criticando a existência desses filmes, dado a importância que eles têm para a conscientização (de cis heterossexuais), entretanto, para a população queer, onde está a esperança nessas narrativas?

A ausência de narrativas ‘‘bobinhas’’ ou de simples finais positivos provoca a assimilação onde o espectador teme ou, no pior dos casos, entende que seu destino não será favorável, isso porque os filmes mais famosos e os mais premiados de temática LGBTQIA+ estão indicando frequentemente. Essa virada nas produções deve ocorrer para que, à princípio, os integrantes da comunidade possam se ver fazendo coisas normais e sem uma carga de preconceito inserida. Filmes como Desobediência (2017), Me Chame pelo Seu Nome (2018), Com Amor, Simon (2018), hoje eu Quero Voltar Sozinho (2014) até confortam, mas há elementos em suas narrativas que representam a intolerância.

Se torna crucial que produções como comédias levinhas ou romances água com açúcar existam. O cinema não pode apenas visar a verossimilhança quando se trata de vidas LBGTQIA+. É necessário que existam ‘‘utopias’’ rebeldes como Você Nem Imagina (2020) ou Crush (2022) para proporcionar histórias onde o seu público alvo possa sentar e assistir despreocupado. Só dessa forma nós, pessoas pertencentes a comunidade, podemos aposentar a habitual frase que vem logo após uma indicação de filme queer: ‘‘Mas o final é feliz?’’

*Estudante de História pela Universidade Federal Fluminense e crítica de cinema. Por meio da página E O Cinema Levou (@eocinemalevou) no Instagram, discute a relação da História com o Cinema a partir de filmes.

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