Por Felipe de Souza*
Hal Ashby, um dos grandes nomes do cinema autoral norte-americano da década de 1970, dirige “Essa Terra é Minha Terra”, uma cinebiografia de Woody Guthrie que vai além do relato de sua vida pessoal. O filme é uma poderosa exploração da luta de classes, do papel transformador da música e das contradições sociais nos Estados Unidos durante a Grande Depressão. Baseada na autobiografia de Guthrie, a obra foca no desenvolvimento de sua consciência política e celebra o impacto social da arte.
O cenário da Grande Depressão não é apenas um pano de fundo em Essa Terra é Minha Terra, mas o alicerce que molda a narrativa e o próprio personagem de Woody Guthrie. A devastação causada pela seca e pela crise econômica é vividamente representada. Os campos áridos, as longas filas de desempregados e os trens lotados de migrantes são capturados com autenticidade impressionante. É impossível assistir ao filme sem traçar um paralelo com “As Vinhas da Ira” (1940), dirigido por John Ford. A cinematografia premiada de Haskell Wexler utiliza uma estética quase documental, com cores desbotadas e um uso magistral da luz natural, evocando a dureza do período. Sua câmera não apenas registra, mas vivencia a luta e o desespero dos trabalhadores explorados.
Woody Guthrie é apresentado como um símbolo da resistência popular, mas Hal Ashby evita transformá-lo em uma figura idealizada. David Carradine entrega a melhor atuação de sua carreira, retratando Guthrie como um homem cheio de contradições: um idealista que muitas vezes se perde em seus próprios dilemas, um pai e marido imperfeito, mas também alguém com uma paixão inabalável pela justiça social. Carradine capta a essência de Guthrie tanto em sua performance dramática quanto nas interpretações musicais, transmitindo a simplicidade e a força de suas composições.
Por se tratar de uma cinebiografia de um cantor, é natural que o filme seja recheado de músicas. No entanto, elas não surgem como meros artifícios narrativos, mas como componentes fundamentais para ilustrar o avanço da consciência do protagonista. Woody Guthrie emerge como um trovador da classe trabalhadora. Suas canções, impregnadas de lirismo e denúncia, transformam o filme em um musical político, onde cada melodia é um manifesto. Vemos Guthrie compondo e cantando para trabalhadores explorados, transformando suas experiências em arte. Mais do que entretenimento, sua música é uma arma contra a opressão, lutas que permanecem atuais.
Hal Ashby demonstra sua habilidade em equilibrar a dimensão épica do filme com momentos intimistas. Sua direção é marcada por um humanismo que evita sentimentalismos fáceis, mas valoriza a luta e a dignidade humanas. Ele utiliza o silêncio e o ritmo pausado para construir uma narrativa que respeita o tempo necessário para que o espectador absorva a história e seus significados. Ashby também integra a narrativa pessoal de Guthrie à luta coletiva de sua época, reforçando como somos moldados pelo contextos históricos.
Embora grandioso em estética e temática, o filme apresenta limitações para o público contemporâneo. Seu ritmo lento e contemplativo exige paciência, especialmente de espectadores acostumados a cinebiografias mais dinâmicas. Além disso, o foco de Ashby nas questões sociais às vezes ofusca aspectos mais íntimos da vida de Guthrie, o que pode frustrar quem espera um retrato mais detalhado de sua vida familiar. Contudo, essas escolhas são deliberadas, priorizando a luta coletiva sobre histórias individuais. Mais do que uma cinebiografia, “Essa Terra é Minha Terra” é uma celebração da força transformadora da arte e da resistência coletiva. O filme dialoga com movimentos sociais contemporâneos, evidenciando como a desigualdade econômica e a exploração da classe trabalhadora são problemas persistentes
“Essa Terra é Minha Terra” é um testemunho do poder da música como ferramenta de conscientização e resistência. Ao retratar a vida de Woody Guthrie, o filme não apenas homenageia um grande artista e ativista político, mas nos lembra da luta de milhões de trabalhadores explorados. Hal Ashby, com sua direção sensível e profundamente humanista, entrega um filme que é, ao mesmo tempo, um documento histórico e uma obra de arte. É um lembrete de que, mesmo em tempos de crise, a arte pode ser uma força poderosa para a transformação social.
Direção: Hal Ashby
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*Cinéfilo e Membro do Podcast Cinema em Movimento