GODZILLA MINUS ONE (CRÍTICA)

Por Leonardo Lima*

Setenta anos após o lançamento do primeiro Godzilla, em 1954 , dirigido pelo japonês Ishiro Honda, o monstro mais famoso da história do cinema chega à sua 34° aparição nas telonas pelas mãos de Takashi Yamazaki – vale salientar que temos aqui o caso da mais longeva franquia cinematográfica, conforme indica o Guinness World Records. Godzilla Minus One trata-se da homenagem perfeita, pois não apenas celebra a figura mítica do kaiju que povoa o imaginário cinéfilo tanto no Oriente quanto no Ocidente, mas o envolve também num contexto em que o drama humano vivido por seus personagens nos remete às bases narrativas do clássico contemporâneo Assunto de Família (2018), de Hirokazu Kore-eda.

Cronologicamente ambientado no Japão pós-Segunda Guerra Mundial (1945-1947), Godzilla Minus One traz a grandiosidade de Gojira (nome original do monstro) e o estrago causado por ele de modo bastante gráfico e assustador, ao mesmo tempo em que confere um tom reverencial à ação destruidora daquele réptil fruto da experiência atômica, como se o mesmo fosse um totem a representar simbolicamente o revés das forças da natureza frente à tentativa do ser humano em exercer controle a todo custo sobre a ordem do natural – isso fica patente, por exemplo, na cena em que os efeitos do ataque mais poderoso de Godzilla são mostrados sob a forma de cogumelo de energia, imagem que, de imediato, associamos às bombas nucleares lançadas pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, respectivamente nos dias 6 e 9 de agosto de 1945.

O mais interessante deste mais recente Godzilla, no entanto, é que o intitulado Rei dos Monstros está longe de constituir o ponto fulcral da narrativa do longa – ainda que, em termos imagéticos, sem dúvida alguma ele proporcione os momentos de maior êxtase e tensão para o público. A título de efeito, o caos e o horror evocados pelas suas aparições aqui servem de instrumento para potencializar o drama individual e coletivo dos personagens que permeia o filme do início até o fim. No âmbito do chamado “cinema de monstro”, isso não apenas é uma raridade – como bem o demonstram as diversas versões de Godzilla produzidas em Hollywood no século XXI – como também é um fator diferencial que agrega considerável valor artístico a Minus One, colocando-o no patamar de obra-prima cinematográfica. Não é absurdo dizer que se trata, até aqui, do melhor filme de 2023, com potencial para entrar numa lista dos 10 melhores dos anos 2020.

Ainda sobre esse nosso argumento, é preciso ir além e afirmar o lugar de “coadjuvante” assumido por Godzilla do ponto de vista criativo de Takashi Yamasaki. Com isso, o monstro aqui é uma espécie de ente teleológico a partir do qual os verdadeiros protagonistas (o Japão e o seu povo) são vistos e analisados, e isto sem qualquer pudor quanto ao estabelecimento do julgamento feito pelo diretor com relação ao país que emergiu da trincheira de traumas vivenciados nos anos 1940 e 1950.

Assim, ainda que Godzilla Minus One possa tão somente ser tido por muitos como um representante do cinema épico de entretenimento pop – na melhor pegada tokusatsu (isto é, filmes de efeitos especiais) -, o fato é que poucos filmes contemporâneos, de caráter fantasioso ou mais cruamente realista, souberam tão bem abordar o passado olhando, em verdade, para o presente. Observa-se, aqui, ousadia narrativa configurada na medida e nos termos certos, uma vez que há uma busca genuína por um enaltecimento da tenacidade do Japão que se ergue no pós-guerra, responsável por elevar o país a um outro patamar de desenvolvimento socioeconômico, e, simultaneamente, por uma tecitura de críticas nada suave a essa mesma identidade japonesa, ainda tão arraigada a crenças e práticas sociais que remetem direta ou indiretamente ao país outrora feudal do século XIX, a exemplo da ética kamikaze, a qual levou aproximadamente 4 mil pilotos nipônicos a morrerem voluntariamente em nome da pátria do Sol Nascente durante ataques aéreos coordenados no front do Pacífico, na Segunda Guerra Mundial.

Godzilla Minus One merece ser assistido na telona do cinema, e posteriormente revisitado muitas outras vezes, pois se trata de filme que executa o milagre do artesanal graças ao uso preponderante de animatronic e efeitos práticos, estabelecendo-se, assim, como um tipo de elixir mágico que nos ensina a como fazer cinema com C maiúsculo, e não aquilo a que fomos domesticados a engolir por meio dos padrões hollywoodianos, um cinema produzido em escala industrial à base de CGI e inteligência artificial e, geralmente, sem coração nem alma.

*Recifense, 38 anos, sociólogo, aliado do feminismo e do movimento LGBTQIAP+, antirracista e torcedor do Santa Cruz. Crítico de cinema, mantenho no Instagram a página Cine Mulholland e um perfil na rede social cinéfila Letterboxd. Também sou integrante do Podcast Cinema em Movimento e do site Urge!

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