TESOURO NATTERER (Crítica)

Por Pablo Rodrigues*

A trajetória da colonização brasileira é marcada por destruição, morte, exploração e saques das culturas dos povos originários indígenas que aqui habitavam. Ao longo desse processo, as riquezas de nosso país e destes povos foram expropriadas pelos países europeus. Assim, discutir a necessidade de repatriação destas riquezas como reparação histórica destas violências é um debate necessário, principalmente após o recente fortalecimento da extrema direita e sua desvalorização para com o patrimônio histórico e cultural do nosso país.

Em TESOURO NATTERER (2024), documentário vencedor do Festival É TUDO VERDADE de 2024, o cineasta Renato Barbieri (PUREZA) traz esta discussão à tona ao narrar a trajetória do naturalista austríaco Johann Natterer, que integrou a Expedição Austríaca que acompanhou a arquiduquesa Maria Leopoldina ao Brasil em 1817. Natterer permaneceu 18 anos no país e, ao longo desse período, reuniu mais de 50 mil objetos culturais, atualmente preservados em dois museus de Viena, na Áustria. Dentre essa coleção está o maior acervo etnográfico sobre os povos indígenas do Brasil no mundo: 2.309 peças de 68 etnias.

O filme narra a trajetória de Natterer no Brasil a partir da perspectiva de seu biógrafo, o austríaco Kurt Schmuttzer, que refaz a rota feita pelo naturalista em terras brasileiras, percorrendo diversas regiões do país. Com esta estrutura narrativa, o longa propõe um paralelo interessante entre o Brasil de 200 anos atrás e o de hoje, levantando reflexões importantes acerca de situações problemáticas que ainda se fazem presentes em nossa sociedade, como o racismo estrutural e as sequelas do regime escravocrata, a desigualdade social, as disputas políticas.

Rodado durante o governo Bolsonaro, o filme também chama a atenção para a importância da preservação de nossas riquezas, de nosso patrimônio cultural e histórico, o qual passou por um processo de desvalorização e desmonte por parte dos governos de extrema direita ao longo dos últimos anos. Nesse sentido, TESOURO NATTERER é, também, uma obra sobre nossas memórias históricas e de como a destruição destas faz parte de um projeto político de apagamento e revisionismo histórico.

Contudo, a temática central de TESOURO NATERER é a repatriação das riquezas extraviadas de nosso país, em especial dos povos originários indígenas, tanto que o longa já explicita isso em sua sequência inicial, na qual vemos o ativista e líder indígena Hans Kaba Munduruku visitando um dos museus de Viena onde encontram-se as peças de seus antepassados coletadas por Natterer. No entanto, a estrutura narrativa adotada pelo filme, bem como sua condução, acaba gerando um movimento no mínimo controverso, pois desloca o foco temático para a trajetória do naturalista austríaco de modo exacerbado, de modo a deixar de lado a proposta inicial, para retomá-la somente no terço final.

A narrativa até faz um bom trabalho na forma como apresenta a trajetória de Natterer no Brasil, com riqueza de detalhes, fruto de uma vasta pesquisa, fazendo com que o público conheça não apenas a figura do naturalista, como também os detalhes de sua pesquisa e viagens pelas nossas terras, através de entrevistas com pesquisadores, cartas escritas pelo próprio Natterer e também animações retratando certos episódios.

Porém, a forma como o personagem central é apresentado é um tanto romantizada, evitando se aprofundar em suas nuances e polêmicas, como o fato do mesmo ter tido pessoas escravizadas, algo que é trazido de modo superficial. E esta escolha em não se aprofundar nos temas mais delicados também é perceptível na escolha do roteiro em não problematizar o colonialismo europeu do qual o próprio Natterer fazia parte, a exploração e as violências perpetradas pelos europeus no Brasil nesse período. Estas escolhas narrativas acabam trazendo para o filme uma perspectiva eurocêntrica, que exalta a figura tanto do europeu quanto de sua sociedade, colocando-os como salvadores das riquezas que historicamente foram roubadas de nosso país por eles mesmos.

Entretanto, em seu terço final, o filme cresce ao retomar sua proposta inicial, trazendo sua temática central de modo assertivo, com reflexões importantes. É uma pena que a montagem não soube intercalar esses elementos ao longo da obra, o que traria uma dinâmica menos controversa ao longa.

Indicado do Brasil para concorrer a uma vaga na categoria de Melhor Documentário no Oscar 2025, TESOURO NATTERER é um filme com uma história interessante e que, ainda que cometa alguns deslizes narrativos, é uma obra que levanta discussões relevantes acerca da importância da preservação do nosso patrimônio histórico e cultural, da memória de nosso país, da necessidade de reparação histórica.

Agradecimentos à Polidea Comunicação

*Psicólogo social, crítico de cinema, militante de esquerda, criador do canal do Youtube e do podcast CINEMA EM MOVIMENTO.

Comente