RRR: REVOLTA, REBELIÃO, REVOLUÇÃO

Por Breno X. Matos*

Na Índia pré-independência, um guerreiro corajoso em uma missão perigosa encontra um policial que serve ao exército britânico disfarçado. Sem que ambos saibam de suas verdadeiras identidades, nasce dali uma amizade.

Não é de hoje que a cultura e o próprio indiano sofrem preconceitos. Quando estendemos o assunto para o cinema, e as produções de Bollywood, é então que o assunto fica ainda mais delicado. Sim, é um outro olhar para o cinema, uma linha bem distante do que o público ocidental está acostumado a consumir. Talvez o cineasta mais próximo a nossa memória que tenha conseguido criar um elo entre os dois mundos de forma mais competente seja Satyajit Ray, diretor da clássica Trilogia de Apu composta pelos filmes; A Canção da Estrada (1955), O Invencível (1956) e O Mundo de Apu (1959). Mas e o cinema indiano contemporâneo com todos os seus exageros? Bom, S. S. Rajamouli, ao conseguir distribuição de seu mais novo filme RRR: Revolta, Rebelião, Revolução para a poderosa Netflix, também conseguiu visibilidade para mostrar ao mundo o que nós estamos perdendo.

Os filmes-espetáculo que vemos nos grandes cinemas de shopping hoje, os famosos filmes-eventos que quebram as bilheterias, como os da própria Marvel por exemplo, são tão focados em uma verossimilhança, em um realismo desnecessário, que acabam passando muitas vezes pela tangente do ridículo. É preciso engolir tanta falta de lógica para se comprar a tal verdadeira lógica vendida nessas obras que se torna até um ato de hipocrisia, ou pelo menos um ato contraditório, elogiar tais obras, mas renegar outras que seguem uma linguagem e proposta semelhante, mas com facetas diferentes, e talvez até mais ricas; um personagem voar por causa de um golpe de outro, atravessando paredes descaradamente falsas, cheias de efeitos visuais questionáveis, é inadmissível para o público que adora ver um John Wick ser atropelado diversas vezes, levar diversos tiros e ainda continuar vivo e de pé para uma próxima luta braço a braço, e ainda vencê-la no fim, simplesmente porque a ação do segundo é crua, bem coreografada, e busca uma lógica mais próxima da física de nossa realidade, mesmo quando tais coisas ainda são questionáveis também se você parar para pensar alguns poucos segundos. A diferença é que S. S. Rajamouli não está nem um pouco preocupado com essa falsa realidade exigida por avaliadores que pouco entendem de física.

E, ainda assim, estes argumentos acima poderiam ser facilmente utilizados para qualquer obra medíocre que conte uma historinha mal executada e mal escrita qualquer. O diferencial aqui é que além do diretor estar completamente consciente no que é feito atualmente, no que é exigido no tal cinema-espetáculo, no cinema de ação atual, ele deliberadamente quebra com essa regra ao buscar justamente o oposto através dos seus exageros. Sim, acho que alguns exageros propositais aqui ainda são excessivos, mas a brincadeira no processo é tão divertida que não chega a incomodar. Existe um cinema por trás de todo esse falso puro entretenimento. Toda a decupagem, a fotografia estilizada, as ideias visuais e os enquadramentos sempre muito bem pensados na forma como irão ser capturadas pela câmera, a duração de cada imagem e a força que elas terão para o espectador, todas minuciosamente trabalhadas para entregar o melhor possível dentro do objetivo inicial. E o filme não tem medo de seguir essa mesma linha do início ao fim, mesmo com toda essa duração de 3h, ele ainda consegue ser bem consistente. Sem falar da incrível sequência de dança realizada pelos protagonistas Ram Charan e N.T. Rama Rao Jr. que é um espetáculo à parte.

E para os críticos do politicamente correto, só para finalizar; pra quê se apegar aos erros históricos dessa colonização inglesa em terras indianas, e toda essa generalização do povo britânico que o filme faz intencionalmente, quando na verdade tudo não passa de uma ficção que já é adaptada de uma lenda toda enfeitada e floreada para dar orgulho ao povo indiano? É um filme completamente desprendido de qualquer amarra do cinema padrão atual. Poucos realizadores raramente têm peito para chegarem e fazerem uma obra assim, em uma época em que o cinema mais valorizado no mundo é o do falso realismo solene. Isso deve ser valorizado.

*Escritor, crítico de cinema, autor do livro Sobre Pássaros e Caracóis e grande admirador de arte, compartilha seus pensamentos e admiração pelo cinema por meio da página no instagram; Lanterna Mágica.

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