SOY CUBA (1964)

Por Felipe de Souza*

Lançado em 1964, “Soy Cuba”, de Mikhail Kalatozov, é uma obra que combina poesia visual com um profundo compromisso político. Fruto de uma colaboração entre a União Soviética e Cuba, o filme retrata a luta do povo cubano contra o imperialismo estadunidense e a exploração capitalista, utilizando uma linguagem cinematográfica inovadora que o coloca entre os grandes clássicos do cinema político.

Estruturado em quatro episódios interligados, o filme aborda diferentes aspectos da vida cubana antes da Revolução. Cada segmento foca em um tema central: a opressão dos trabalhadores rurais, a exploração sexual das mulheres, a resistência estudantil e a luta armada dos camponeses contra a tirania. Essa estrutura fragmentada, longe de enfraquecer o filme, reforça sua mensagem ao dar protagonismo ao coletivo, em vez de personagens individuais, refletindo o espírito revolucionário da época.

O maior destaque de “Soy Cuba” é sua extraordinária linguagem visual. Sob a direção de Kalatozov e a cinematografia de Sergei Urusevsky, o filme desafia convenções com seus longos planos-sequência e movimentos de câmera fluidos. A câmera parece flutuar pelo espaço, como se guiada pelo próprio espírito de Cuba, criando uma experiência imersiva e quase onírica que se distingue das narrativas convencionais. Um exemplo icônico dessa estética é o plano-sequência do funeral de um estudante revolucionário. A câmera move-se de uma janela para a rua, atravessa a multidão e sobe até o telhado, capturando a comoção coletiva em um movimento coreografado e profundamente impactante. Esses momentos, aliados a uma composição visual cuidadosa, transformam o filme em uma experiência que ultrapassa o realismo e alcança uma dimensão poética única.

A fotografia em preto e branco, marcada por contrastes dramáticos, reforça a dualidade entre opressão e esperança, central à mensagem do filme. Urusevsky utiliza ângulos extremos e perspectivas inovadoras para criar imagens que parecem gravadas na memória, ao mesmo tempo belas e carregadas de tensão. Cada enquadramento é projetado para captar tanto a grandiosidade da luta revolucionária quanto a intimidade das histórias humanas que a compõem.

Embora o filme seja frequentemente celebrado por sua estética, sua mensagem política é igualmente poderosa. A obra denuncia com vigor a exploração imperialista, representada pela presença dos turistas estadunidenses que degradam a cultura cubana, enquanto exalta a força coletiva do povo na luta por sua emancipação. Em um dos episódios mais marcantes, a prostituição de uma jovem simboliza a decadência de um sistema opressor, evidenciando a crueldade do capitalismo que reduz indivíduos a mercadorias.

Essa crítica social se estende à exaltação dos camponeses, trabalhadores e estudantes como agentes de transformação histórica. A revolução não é apenas um tema do filme, mas sua própria alma, que vibra em cada imagem e na narrativa que, mesmo fragmentada, constrói um retrato coeso da resistência. Essa visão idealizada pode parecer simplista à luz de análises contemporâneas, mas reflete o contexto político e as aspirações de uma época marcada pela luta contra o imperialismo.

Inicialmente, “Soy Cuba” não foi bem recebido nem em Cuba nem na União Soviética. Para os cubanos, o filme apresentava uma visão deslocada de sua cultura, enquanto para os soviéticos, sua linguagem altamente experimental parecia excessiva. Foi somente nos anos 1990, graças aos esforços de cineastas como Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, que o filme foi redescoberto, restaurado e reconhecido como uma obra-prima.

Essa redescoberta destacou a relevância de “Soy Cuba” como uma obra que transcende fronteiras e ideologias. Apesar de ser profundamente enraizado na história e política cubanas, o filme aborda questões universais sobre opressão, resistência e o desejo de liberdade. Sua combinação de estética inovadora e mensagem política serve de inspiração para diversos cineastas ao redor do mundo. Ainda que algumas críticas apontem que o filme prioriza a forma em detrimento do conteúdo, transformando a luta revolucionária em um espetáculo visual, é impossível negar o impacto emocional e intelectual de sua abordagem. o filme é um exemplo raro de como a arte cinematográfica pode dialogar profundamente com as condições históricas que a geraram.

A visão romantizada da Revolução Cubana que o filme apresenta pode, de fato, ignorar suas contradições e complexidades, mas essa idealização é coerente com o propósito político da obra. Em vez de buscar um retrato objetivo, Kalatozov e sua equipe criam uma celebração do potencial transformador do povo cubano e de sua luta por justiça social. No final, “Soy Cuba” se revela não apenas como um filme político, mas como um poema visual que exalta a capacidade humana de resistir e transformar sua realidade. É um testemunho do poder do cinema como instrumento de mudança social e expressão artística.

Décadas após seu lançamento,”Soy Cuba” permanece como uma celebração da luta de um povo heroico. Sua poesia visual e seu compromisso revolucionário fazem dele uma obra singular na história do cinema, capaz de emocionar, inspirar e desafiar os espectadores a enxergar o mundo de forma diferente. Assim como a pequena ilha localizada no Caribe, que ainda hoje é um símbolo de resistência para todos os povos oprimidos.

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*Cinéfilo e Membro do Podcast Cinema em Movimento

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